terça-feira, 24 de janeiro de 2017

SANTA MARIA DA LIBERDADE II. SEGUNDA PARTE

Imagen da Santa Maria da Liberdade

Pouco depois de ouvir a história de Maria da Liberdade, fiz o que todo mundo faz hoje em dia: uma busca no Google. E, surpreendentemente, a internet, que tudo sabe e tudo vê, só tinha duas matérias do Site Cultural de Feijó, do Prof. Evilásio Cosmiro. E um vídeo de fotos, feito e postado no Youtube, por uma família que subiu o rio Envira até a capela que guarda o túmulo da Santa Maria da Liberdade. Ou seja, para os padrões da internet com que estamos acostumados, quase nada.
Mas, um pequeno texto repetido nas duas matérias do site de Feijó abriu diante de mim um mar de contradições. Muito maior e profundo do que eu podia imaginar.
“(...) Maria da Liberdade, foi uma boa jovem, que sempre morou com sua família em um seringal situado às margens do rio Envira. Aos quinze anos, foi assassinada por seu irmão, por não aceitar casar-se com certo homem, antes de morrer Maria da Liberdade, perdoou o mesmo.”
Como assim? Na primeira história Maria já tinha 20 anos, aqui 15. O irmão, que era seu protetor, agora é seu assassino. E o motivo foi ela se recusar a casar com “certo homem”. O que mostra uma postura autoritária do irmão de Maria, ao invés da cumplicidade revelada pela primeira história. Mas, mesmo assim, antes de morrer, Maria perdoou seu irmão. O que, talvez, fosse uma justificativa para sua posterior santificação.
Em seguida, o mesmo texto conta que "(...) no seringal, foi construído uma Capela (...) e em seu interior fica somente a sepultura da Maria Liberdade, pois seu corpo foi levado para Roma pelo Monsenhor.”
Mais uma vez, tudo ao contrário. Na primeira versão o corpo misteriosamente volta pro Seringal Liberdade e lá permanece. Nesta segunda, o corpo de Maria foi retirado da sepultura, já transformado em Capela e lugar de devoção, e levado para ROMA!!! Pelo Monsenhor??? Que monsenhor? Como um corpo é tirado daqui do Acre e levado pra Roma sem termos nenhuma noticia em canto algum?
Bueno... Independente do que quer que tenha levado Maria à morte, a devoção à Santa Maria da Liberdade cresceu com força e velocidade surpreendentes. Como parece ter acontecido também com o São João do Guarani, em Xapuri; a Santa Raimunda do Bonsucesso, em Assis Brasil; a Profª. Rosalina, em Rio Branco; o irmão José da Cruz, no Juruá; e muitos outros santos e profetas espalhados por quase todos os rios e povoados e cidades desse Acre de espiritualidade tão especial e intensa.

A capela de Santa Maria da Liberdade passou a ser um lugar de peregrinação pra todo o povo do rio Envira, Jurupari, Tarauacá, Muru e até do Juruá, dizem. As promessas e as histórias de graças alcançadas se espalham e são atestadas com grande firmeza e fé pelos que são “validos”, como diz o povo, pela menina Maria tornada Santa em seu martírio. E, a partir desse ponto, todos os relatos convergem na mesma direção, apesar de outras tantas contradições específicas, em relação ao grande poder da santa do alto Envira.
Ou seja, a essa altura me pareceu que a história que precisava ser pesquisada e conhecida era a da Maria, ponto de partida da história da Santa. A história de vida daquela pessoa com nome e sobrenome que viveu no seringal Liberdade, até que uma morte brutal a tornou santa aos olhos de todos. Especialmente, porque as duas versões que eu tinha sobre ela e as circunstâncias da sua morte, até então, eram completamente opostas e antagônicas.
Por coincidência, há alguns dias atrás, surgiu a oportunidade de ir a Feijó e, talvez, subir o rio Envira até o túmulo/capela do Liberdade. Claro que nem pensei duas vezes... fui.
Mas, antes mesmo de chegar a Feijó, uma rápida subida no rio Jurupari, me levou ao Parque das Ciganas, uma comunidade muito bonita, de vida farta e tranquila, em um rio que eu ainda não conhecia. E, lá, o patriarca da comunidade, Seu A.* me contou uma nova versão da história da “Maria do Liberdade”.
Segundo ele: “Meu pai trabalhou lá no Envira, no seringal Liberdade. Ele e minha mãe contavam que foi o irmão que matou a irmã. Mas não foi porque quis. Ele brincava muito. Gostava muito dela e gostava de brincar. Ai foi e disse que ia matar ela. Mas, não pensou que tinha cartucho. Na mente dele, tinha tirado o cartucho da espingarda. Ai foi, brincando por lá, detonou a espingarda e matou, acertou ela. Não foi porque ele quis. Ele desesperou-se muito.
Ai ela foi sepultada e, com pouco tempo, o papai contava que as pessoas passavam na cova dela e tava aquele cheiro! Um perfume que parecia que tinha aberto um vidro de perfume naquele instante. A notícia correu e os padres foram lá e fizeram a capela. E ela é conhecida, desde aquela época, como Santa Maria da Liberdade. Meu pai disse que os padres levaram o corpo dela. Mas o poder ficou lá. O poder de Deus ficou lá onde ela foi sepultada.”
Pra minha surpresa... Era a terceira versão diferente com que eu me deparava. Mas, uma hora, os depoimentos teriam que começar a se repetir. E, provavelmente, essa versão mais repetida deveria ser a de maior veracidade e capaz de orientar a busca por documentação sobre o caso. Pelo menos era o que eu esperava...
Mal podia imaginar, ainda, o que ia encontrar em Feijó...
* A partir desse ponto não vou identificar mais as pessoas que me deram depoimentos e informações, até que elas leiam esses artigos que estou publicando e autorizem a citação de seus nomes.

Túmulo da Santa, aonde vários devotos pagam suas promessas
O único lugar onde eu tinha esperança de encontrar algum tipo de registro sobre a história da Maria do Liberdade era a igreja católica. Por isso, em Feijó, tratei de ir direto pra Igreja Matriz da cidade, consagrada a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. E a primeira pessoa que encontrei, ainda no pátio externo, foi a Dona R., que não me contou nenhuma história da morte de Maria, mas, sem muito arrodeio, disse que...
“Minha avó viajou no mesmo navio em que os ossos da Maria foram pra Roma. A urna onde ela estava ia escoltada por dois soldados, um de cada lado. Minha vó disse que ninguém podia nem chegar perto. Isso ela me contou e é verdade!”
Em seguida, sem aviso, Dona R. me disse o nome do irmão de Maria. Nome e sobrenome! Tomei um susto, eu juro. Não tinha me ocorrido, ainda, perguntar o nome dele. Muito menos tentar procurar por ele pra achar a Maria. Só então percebi que, por mais óbvio que pareça, ele continuou vivo e, talvez, tivesse tido filhos e netos que poderiam ajudar a conhecer essa história. Quem sabe.
O problema é que comecei a ouvir novas versões sobre a morte de Maria. Só que elas trouxeram mais dúvidas do que respostas, sobre o que teria acontecido entre ela, seu irmão e os outros personagens que continuavam a surgir...
Dona S. disse que “Tinha 7 ou 8 anos e, como toda criança, gostava de ouvir a conversa dos adultos. E uma senhora, Dona Olívia, amiga da minha avó, era costureira e mulher de um antigo regatão e contava muitas histórias dos rios e seringais que conheceu.
Um dia, ouvi ela contando essa história, que era proibida pra mim. Mas, consegui escutar e nunca mais saiu da minha cabeça. Ela contou que foi mesmo o irmão o culpado da morte da Maria. Ele gostava dela e ‘ficou’ com ela. Então, ela se desesperou e se matou.”
Ouvir essa versão, confesso, foi como um soco no estômago. Eu tava estranhando que algo assim ainda não tivesse surgido. Ao mesmo tempo, torcia pra que não surgisse... Às vezes, é difícil não se envolver com as histórias que se contam.
No dia seguinte, Seu F. me contou que “A história que eu conheço é que um cara tentou estuprar ela, mas não conseguiu! Dai matou ela. Mesmo morta, ela ficou dum jeito que, ele ainda tentou estuprar depois de morta, não conseguiu! Dai o irmão dela, chegou e viu o que o cara tinha feito, foi, e matou ele.
Depois ela foi enterrada e começaram a rezar por ela e a receber milagres. Ai vieram aqui na cidade e chamaram o padre. O padre, com mais ou menos um mês depois dela morta, desenterrou e ela tava do mesmo jeito que tinha sido enterrada, perfeita. Ai trouxeram pra cidade. Veio gente de Roma pra cá, uns Bispos, uns Cardeais, dai levaram ela pra Roma. Ou, não sei se foi pra Roma, só sei que tiraram daqui de Feijó. Eles dormiram lá no seringal Japão, onde minha vó morava. Minha vó pediu um pedaço da fita que estava enrolada nela. E minha vó era bem conhecida por lá, por isso, cortaram um pedaço da fita e deram pra ela.”
Mas Dona N., buscando em lugares longínquos de sua memória de 85 anos, tornou a levar a história noutro rumo quando me assegurou que “A Santa Maria da Liberdade foi o irmão que matou. Ele tava trepado lá em cima do ‘sóti’ (traduzindo: no sotão da casa), a espingarda disparou e pegou nela. Antes de morrer ela falou que quando alguém tivesse problema, precisasse de ajuda, era só pedir, pra que se valesse dela. Acho que ela tinha 13 anos quando morreu. Meu pai ia todos os anos pro Liberdade. Meu sogro, que tirava caucho lá no alto Envira, foi que conheceu ela ainda viva.”
No mercado da cidade, Dona H. que, eu e meu guia, encontramos por acaso, disse que “Ouviu dizer... que o irmão dela era muito afobado e pediu pra Maria engomar uma roupa, porque ele ia pra uma festa. Ai, ela falou que não ia engomar roupa nenhuma! Assim mesmo ela foi.
Quando ela se abaixou no baú, ele pegou e deu um tiro nela. Atirou nela! Ai, assim: de cada um desses chumbos que pegou nela, virou... estrelas...
Mas, ninguém sabe, né? Tem muitas histórias...”
E, numa demonstração cabal que, por mais estranha que, às vezes, possa parecer nossa compreensão da realidade, sempre se pode torná-la ainda mais extraordinária, Seu S. me garantiu que “Maria arranjou um namorado e seu irmão não aceitou. Um dia o cabra foi atrás de falar com a Maria e o irmão botou pra cima dele pra matar, mas não conseguiu. O cabra escapou. Ai, o irmão matou ela... Ela era muito novinha quando aconteceu...”
A essa altura do campeonato, minha cabeça dava voltas. Porque, paralelamente a essa multiplicidade de versões: eu tentava calcular a data, ou a década ao menos, que isso tudo aconteceu, mas sem achar; buscava nos livros de batismos das desobrigas que foram feitas pelos padres, dos anos 20 pra cá - graças à boa vontade dos responsáveis - registros de Maria ou de sua família no alto Envira; tentava pôr em ordem a construção da capela/túmulo no Liberdade e da igreja na cidade de Feijó e suas respectivas comunidades; procurava encontrar a filha do irmão de Maria, que diziam ainda estar por lá... Enfim...
Um turbilhão de coisas e possibilidades que nem estou contando aqui, pra que esses artigos possam ser lidos nestes tempos de twitter, face e textos mínimos... Mas, foi uma alagação de informações tão intensa que, naquele momento, vertiginoso, deu pau no meu HD. Travei. De verdade. Não conseguia mais lembrar quem tinha me contado o que... Tudo virou uma coisa só, indistinta, como fosse uma sopa de histórias passada no liquidificador. E, ainda por cima, quente, fervente.
Ai ai... Ainda bem que gravei umas coisas, filmei outras e anotei o q pude... Senão, não teria sequer, uma história pra contar. Mas, como disse nas postagens que fiz, lá de Feijó, semana passada: essa é, sem duvida, a história mais louca de tantas quantas histórias já encontrei... na vida.
fonte  voltadaempreza.blogspot.com

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