domingo, 21 de janeiro de 2018

EXCLUSIVO: A VINGANÇA DA HISTÓRIA contra a inauguração do “Novo Presídio”

EXCLUSIVO: A VINGANÇA DA HISTÓRIA contra a inauguração do “Novo Presídio”

Parte I - Na foto de capa, Visita do Governador Nabor Júnior ao novo presídio. Fonte: ORB, 17.04.1983, p. 07.

               Era o dia 14 de março de 1983, uma segunda-feira, por volta das oito horas da manhã, quando o governador Joaquim Falcão Macedo[1] e sua comitiva passaram pela estrada de chão Dias Martins para inaugurar mais uma de suas principais obras. Naquele 14 de março, muita gente rumou naquela direção para assistir o ato solene. Tratava-se da aguardada inauguração do novo Presídio do Acre, uma “obra suntuosa”[2] que vinha gerando intensas expectativas já há alguns meses. “O novo estabelecimento prisional garantirá aos órgãos responsáveis pelos presos, maior faixa de segurança, tendo em vista que se trata de uma obra, cujo sistema de segurança encontra-se entre os melhores das penitenciárias do país”, propagandeava o Jornal O Rio Branco, 11 dias antes[3].  


              Na terça-feira os rio-branquenses, ao custo de Cr$80,00, liam no jornal: “O governador Joaquim Macedo, na manhã de ontem, inaugurou diversas obras na capital (…). As solenidades tiveram início às 07:00 horas quando o governador manteve uma reunião com todo seu secretariado em sua residência, partido então para o Estabelecimento Penitenciário “Francisco de Oliveira Conde”, localizado na Estrada de ligação à colônia Dias Martins, na altura do Km 12. (…)”. A crer neste jornal, mais cinco inaugurações foram realizadas no decorrer do dia. Na terceira, do Porto Major Izidoro, no 1º Distrito, o governador discursou: “Saio absolutamente tranqüilo vou deixar o governo do Estado com a consciência tranqüila do dever cumprido. Meu governo foi voltado ao bem estar do povo. Um compromisso assumido no início de nossa administração. Se não fizemos um grande Estado, deixamos o embrião” [4]. Era o fim do seu mandato, seu último dia.
Foto  de jornal. Joaquim Falcão Macedo, Governador do Acre (PDS) até o dia 15 de março de 1983. Fonte: Jornal O Rio Branco.
             Naquela mesma terça-feira, dia 15, Nabor Júnior era empossado como o novo governador do Acre, tendo como bandeira de luta a frase modificar para melhorar. Entrava o PMDB, saia o PDS. No parlamento, os vinte e quatro deputados estaduais eleitos já haviam sido empossados quatorze dias antes. Destes, doze eram peemedebistas, onze pedessistas e um petista[5]. Esta distribuição “deixou folgada zona de manobra ao governador eleito Nabor Júnior. É necessário, entretanto, que o líder do Governo Nabor seja hábil, tenha jogo de cintura, a fim de acomodar situações favoráveis ao PMDB”, narrava o Jornal O Rio Branco[6]. As novas relações de poder exigiam novas reconfigurações, novas posturas.
              Enquanto alguns desses parlamentares aguardavam ansiosamente o passar dos dias para saber qual seria a postura do novo governador para que pudessem decidir que posições políticas adotariam, lia-se com humor hilariante na famosa página 06 do O Rio Branco: “moradores querem acabar com o inferninho”, “valentão deixou a mulher nocauteada no asfalto”, “polícia prende ladrão de botija de gás”, “colono das 3 Palheta esfaqueado”[7]. A crer nos jornais da época, a cidade de Rio Branco estava inquieta com o grande aumento da “delinqüência” desde o início da década, e amargava “agora” tempos de crise econômico-social, incertezas e insegurança pública. Eram muito comuns essas notícias nos jornais, sobretudo naqueles vinculados ao governo, como o Jornal O Rio Branco – ORB. Desde o ano de 1982 esses jornais já alardeavam como altos os índices de violência e criminalidade na capital acreana; ostentando a urgência de medidas repressoras, quer dizer, medidas policiais eficazes, pois, o aparelhamento policial, as delegacias de polícia e o antigo presídio, afirmavam, já não eram mais suficientes para coibir a ação dos “delinqüentes”[8] e “marginais”. Esse foi o discurso inventado pelas autoridades e [re]produzido pelos jornais para justificar a necessidade de intervenção estatal nas camadas populares, tidas como focos de “delinqüentes”, “bandidos” e “gente corrompida”. Criminalidade vista como sinônimo de pobreza. O pobre é necessariamente um criminoso em potencial: foi partindo dessa concepção que homens públicos pontuaram suas ações.

Foto de jornal. Francisco Walquírio Gondim, o “Velho”. Que “usando um grampo de cabelo (…) escapou sensacionalmente da polícia”. Na opinião das autoridades da época um maconheiro, bandido e assaltante. Fonte: Jornal O Rio Branco.
           Podemos observar que esse discurso, do “aumento da delinqüência e da criminalidade”, foi, portanto, produzido para se fazer acreditar na necessidade do poder público intervir. Não sabemos ao certo, porém, se esse alarido das autoridades foi acompanhado de estatísticas. Para sabermos adequadamente se houve ou não “crescimento da delinqüência”, seria necessário empreendermos buscas específicas sobre os livros de registro de ocorrências diárias das Delegacias de Polícia de Rio Branco dos anos de 1982/1983, os quais são hoje ótimas fontes de pesquisa a respeito desses acontecimentos. Seja como for, os jornais [re]produziram cotidianamente essa representação de mundo e, por isso, não é difícil supor que os leitores daquela época acreditassem que realmente era necessária a intervenção do Estado. Que traga o Leviatã para punir-vos! Fato é que as autoridades acreanas, sobretudo aquelas vinculadas à segurança pública, empenharam-se em fazer acreditar que era necessário punir ou “combater”, como em uma guerra, os “delinqüentes” e “marginais” – que ao nosso sentir são produtos da expropriação, do esbulho ou, em tom romântico, da divisão injusta das riquezas e da propriedade privada.
               Ora, não há dúvidas de que “a pobreza força os homens livres a fazer muitas coisas servis e mesquinhas”[9], assim como não há dúvidas de que existem pessoas pobres que são honestas e trabalhadoras, quer dizer, não-criminosas. A perspectiva das autoridades, porém, era outra: pessoas de posse não se corrompem, pois não passam fome, não tem precisão de roubar, logo, são honestas e virtuosas, ao passo que o pobre reagindo ao seu instinto de sobrevivência é capaz de realizar qualquer ação, inclusive “criminosa”. Daí resultando a seguinte moral: a prisão é para pobres. Os jornais aliados do governo participaram desse processo, contribuindo com a divulgação desses significados sociais, os quais, no fundo, serviram para justificar a repressão, a moralização por parte do Estado nas camadas mais pobres. Na figura abaixo, o jornal já divulgava o presídio como moderno, como se tudo que fosse moderno promovesse bem-estar, desenvolvimento humano, melhorias em prol da condição humana. O desenvolvimento, o progresso efetivo de um povo se reflete nos corpos dos indivíduos, não em paredes e mulharas.
Foto de jornal. Vista do presídio URS/FOC. Fonte: ORB, 13.03.1983. A matéria propagandeava: “O moderno complexo prisional de Rio Branco, um coroamento de idéias livres e humanas na tentativa de reeducar o indivíduo”, sob o título SEIJUS crê na integração do presidiário.
               Por essas razões, foi se gestando durante alguns meses certa euforia em torno do novo presídio. O jornal O Rio Branco em 1982 relatava: “O Governador Joaquim Macedo pretende inaugurar até o final de sua administração, alguns dos pavilhões da nova penitenciária de Rio Branco, (…). Vários pavilhões serão inaugurados até março do próximo ano. (…) trata-se de uma obra, cujo sistema de segurança encontra-se entre os melhores das penitenciárias do país. Toda a área dos pavilhões será cercada com muros, onde será instalados sistemas de alarmes”[10].
              As expectativas geradas pela nova penitenciária eram muitas, pois, acreditava-se equacionaria muitos dos supostos problemas que, segundo o discurso dos jornais, dramatizavam a “vida na capital”, quer dizer, perturbavam os representantes das classes privilegiadas. Infelizmente, não sabemos exatamente quem ou quantos acreditaram nesse alarido de que “havia uma crescente onda de assaltos e crimes em Rio Branco”. Mas é possível supor que lendo e ouvindo cotidianamente esse discurso, muitos leitores acreditassem. As informações, contudo, são muito escassas. Mas é fato que um discurso foi inventado e um presídio foi construído.
Foto de jornal. Vista do presídio URS/FOC. 1983. Fonte: ORB. A matéria anunciava “(…) 10 pavimentos confortáveis para abrigar aproximadamente 330 detentos”.
            A idéia das autoridades acreanas não era só construir um “presídio modelo” – conforme observamos nas propagandas dos jornais da época – mas também ampliar e construir “delegacias nos municípios acreanos”[11]a fim de evitar que o “detento tenha que ser deslocado do seu ambiente familiar, o que poderá pesar contra sua  recuperação (…)”[12]. Isolar não isolando absolutamente, era esta uma das idéias.
             Para homens como o ex-Secretário de Interior e Justiça Omar Sabino de Paulo[13] – um dos entusiastas dessa idéia – tais obras não significavam, porém, que o “governo irá instalar imensos depósitos de presos”, ao contrário, são “estabelecimentos penais voltados principalmente para a recuperação do marginal”[14]. Tais idéias foram insistentemente propagandeadas e talvez eficazmente incutidas no imaginário popular da época.
Foto de jornal. Omar Sabino de Paula, primeiro Secretário de Interior e Justiça do Governo Macedo. Fonte: ORB.
             Durante esse período era corriqueiro os leitores de jornais, como O Rio Branco, lerem que o novo presídio “permitirá a aplicação de sistema pedagógico e profissionalizante”, além do cultivo de “arroz, feijão, mandioca, milho, hortaliças, etc., cuja renda (…) ajudará nas despesas do próprio presídio (…)”[15]. Assim agindo, as autoridades romantizavam o presídio e tornavam possível o improvável: a aceitação da prisão como medida punitiva e “ressocializadora”. E para legitimar o novo presídio e tornar a prisão possível, um batalhão de profissionais foi convocado: pedagogos, assistentes sociais, professores, médicos, psiquiatras, enfermeiros, advogados, psicólogos, etc. Todos estes profissionais para dizer ao preso, ao “criminoso”, para fazê-lo acreditar que seu lugar é na prisão. Que precisa se ressocializar. Que, portanto, deve aceitá-la!
                A inauguração do novo presídio, naquela segunda-feira, pelo então governador Joaquim Falcão Macedo foi mesmo um marco histórico. No dia anterior àquele, no domingo, dia 13 de março, o Jornal O Rio Branco, principal meio de comunicação do governo Macedo, aplaudindo as ações da Secretaria de Interior e Justiça (SEIJUS) relatava: “(…) o Departamento Judiciário teve como metas prioritárias a reintegração do presidiário à sociedade onde deva conviver e, para isto, necessário se tornou a criação de estabelecimentos penais, providos de segurança e conforto para os presidiários e pessoal de segurança, enfermarias, dormitórios individuais, salas de trabalho profissionalizante, bibliotecas, quadras, administração, dentro dos padrões mais satisfatórios possíveis, (…). O Complexo Penitenciário não é nada mais do que a coroação de idéias livres e humanas, na tentativa de reeducar o indivíduo”[16]. Portanto, é neste contexto de frenética propaganda, de superestimação do novo presídio e, por outro lado, de absoluto desprezo ao velho presídio Evaristo de Morais – o qual “encontrava-se em estado lastimável, com muita sujeira, mau-cheiro, moscas e pouca iluminação, com uma superlotação carcerária”[17] – que [re]surge em Rio Branco a ideologia da regeneração moral ou do discurso político de “reeducar o detento” ou de que é “necessário prepará-lo para sua volta ao convívio social”[18].
             A história, porém, freqüentemente apresenta revezes e contradições, senão vejamos. Se o novo presídio de fato apresentava “estruturas modernas”, por que em 05.11.1996 o Departamento Penitenciário Nacional, na pessoa do seu Diretor Geral, à época, Dr. Paulo Tonet Camargo, relatou que “(…) sem dúvida alguma é o pior estabelecimento prisional inspecionado até esta data, em todo o território nacional (…)”[19]Por que apenas treze anos depois o presídio Dr. Francisco D’Oliveira Conde já era “o pior” do Brasil? São muitas lacunas a espera de respostas.
PARTE I, do texto: “A CONSTRUÇÃO DO NOVO PRESÍDIO: A euforia pelo novo, o desprezo pelo velho”.
A invenção do discurso da “recuperação social”. 2009. 93 f.
Monografia (Graduação em História – Licenciatura/Bacharelado) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Acre, Rio Branco – Acre, 2009. CDU 343.812.
Orientador: Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque.
  1. Prisão, 2. Ideologia, 3. Reeducandos, 4. Recuperação social, I. Título
Notas de rodapé:
[1] O vice-governador José Fernandes do Rego geralmente inaugurava as obras do interior do Estado.
[2] Jornal O Rio Branco, 24.03.1983, quinta-feira, p.06. “Obra suntuosa” foi a forma como o novo Secretário de Interior e Justiça Francisco Gonzaga Castro definiu a nova penitenciária.
[3] Jornal O Rio Branco, 03 de março de 1983, p. 02. A matéria tem o título “Nova penitenciária de Rio Branco fica pronta nesta quizena”. O nome do presídio – “Dr. Francisco D’Oliveira Conde” – foi dado em “homenagem ao advogado e governador interino (do Acre) no período de setembro de 1928 a outubro de 1929 (…)”, segundo Débora da Rocha Silva. Ver A inclusão dos reeducandos no mercado de trabalho, p.23.
[4] Jornal ORB, 15.03.1983, terça-feira. Matéria de capa.
[5] Os deputados eram: Ivan de Castro Melo (PT); Adauto Frota, Félix Bestene, Isnard Barbosa Leite, Narciso Mendes, Kleber Campos, Railda Pereira, Maria das Vitórias, Edgar Fontes, Romildo Magalhães, Luiz Pereira, Hermelindo Brasileiro (todos do PDS); Edson Cadaxo, Manoel Pacífico, Raimundo Sales, Manoel Machado, Francisco Thaumaturgo, Félix Pereira, Raimundo Melo, Geraldo Maia, Alcimar Leitão, Maria Pinho Pascoal, Adalberto Aragão e Jader Machado (todos do PMDB). Na votação das matérias o Presidente da Mesa Diretora Edson Cadaxo só votava em caso de empate, é o chamado voto de minerva.
[6] Jornal ORB, Ano XIV, 01.03.1983, p.05. Matéria “O que esperar da nova Bancada do Legislativo”, assinada por Luís Carlos.
[7] Jornal ORB, Ano XIV, 01.03.1983, p.06.
[8] De acordo com Marcos Inácio Fernandes “na medida em que a urbanização se acentuava, devido à intensificação do êxodo rural* acelerado, iam-se avolumando os problemas sociais nas áreas urbanas. A infra-estrutura precária de Rio Branco não tinha suporte para absolver o contingente populacional expulso do campo”, in O PT no Acre: a construção de uma terceira via. UFRN, 1999 (dissertação de mestrado), pp.41.
[9] Demóstenes, Orationes, 57.45. Citação extraída de Hannah Arendt, A condição humana, p. 74.
[10] Jornal ORB, Ano XIII, nº.1.671, 01.09.1982. Matéria de capa: “Nova penitenciária pronta ainda este ano”.
[11] Jornal ORB, 10.09.1982, sexta-feira, pp.06. Matéria: “Os caminhos do crime”.
[12] Jornal ORB, 10.09.1982, sexta-feira, pp.06. Matéria: “Os caminhos do crime”.
[13] Omar Sabino de Paula era advogado e professor. Foi deputado constituinte, vice-governador e deputado federal. Em 23.03.1983 foi nomeado pelo Presidente da República, o general João Figueiredo, Reitor da Universidade Federal do Acre – UFAC, em substituição ao ex-reitor Áulio Gélio Alves de Sousa.
[14] Jornal ORB, 10.09.1982, sexta-feira, pp.06. Matéria: “Os caminhos do crime”. *Este termo foi cunhado pela Igreja Católica nos anos 60, talvez o melhor seja falar “migrações internas”.
[15] Jornal ORB, 10.09.1982, sexta-feira, pp.06. Matéria: “Os caminhos do crime”.
[16] Jornal ORB, 13.03.1983, domingo, caderno 2.
[17] Jornal ORB, Ano XIII, nº.1.830, 25.03.1983, sexta-feira, pp.06. Matéria: “Gonzaga Castro constata: preso não levou peia”.
[18] Jornal ORB, 10.09.1982, sexta-feira, pp.06. Matéria: “Os caminhos do crime”.
[19] Citado por MOREIRA Felismar M.; FILHO, José Rui da S. L.; MARQUES, Odilardo José B., em O trabalho e a execução penal: impressão sobre o trabalho prisional na Unidade de Recuperação Social Dr. Francisco de Oliveira Conde, artigo, 2006, 14 pág. Biblioteca da Uninorte. Arquivo cód. M365.66098112/M835t. Ver p. 11. Os autores não citam a fonte do relatório.

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