sábado, 3 de novembro de 2018

"A MORTE É UM ABUTRE QUE SE TRANSFORMA EM ÁGUIA "- POR MOISÉS DINIZ.



Quando você vive a morte na sua carne e na sua mente, quando ela ataca a tua alma como lobos famintos, o que nos sobra de vida, depois, a gente trata como eternidade.

Este testemunho doloroso, da minha experiência de quase morte, que eu ofereço aos meus amigos, no dia dos mortos, para que eles passem a olhar pra vida como milagre de Deus.

A MORTE É QUASE INSUPORTÁVEL, MAS, É UMA PORTA PARA SENTIMENTOS ETERNOS

Descrever a morte pode parecer algo fácil, tendo à disposição um lápis ou um teclado de computador. Na verdade, este testemunho foi escrito na tela miúda do meu iPhone, enquanto eu me recuperava no leito do hospital. Muitas das angústias que senti e muitas das visões que tive ficaram perdidas no pen-drive da minha mente. Escrevi o que a minha memória permitiu, como se a robustez das pedras se transformassem em nuvens, porque o que se sente quando estamos morrendo incomoda mais do que sal numa ferida, dói mais do que lavas incandescentes penetrando nosso corpo.

Não há nada mais doloroso do que você sentir que está morrendo e não poder falar, nem mover sua mão para fazer um sinal, pedir água, que é o que mais queremos (em termos físicos) quando estamos desfalecendo, dizer a quem está ao lado da maca, que queria minhas filhas ao meu lado, que queria receber um abraço de quem me ama, dizer que faria qualquer coisa para não morrer naquele instante, que, se eu não morresse naquela hora, faria de tudo pra viver diferente, que jogaria no lixo qualquer forma de desamor, que lutaria para que ninguém passasse pelo que passei, que guardaria tempo para as coisas do coração, para o que é sagrado e belo.

EU NÃO VI A MORTE CHEGANDO

Na última segunda-feira (7/05/2018), eu vivi uma experiência de quase morte. Os especialistas devem dar outros nomes, mais sofisticados, outros podem achar que foi alucinação. Mas, eu ‘vivi’ (se é esse o termo) um momento tão intenso com a morte, que foi como se fosse uma batalha eterna, entre anjos e demônios, que disputavam meu corpo e minha mente.

Hoje, depois de todo o sofrimento silencioso que passei, tenho absoluta certeza de que Deus estava dentro da minha mente, como um universo de fogo a aquecer o frio da morte que tomava conta do meu corpo.
Na quinta-feira (3/05), eu peguei a estrada para Feijó (350 km de Rio Branco), para ser apresentado à equipe do Depasa de lá (órgão de saneamento que eu acabara de assumir a presidência). Na saída de Sena Madureira (140 km de Rio Branco), comecei a sentir uma tontura muito forte. Mas, outros fatores me levaram a não entender aquela tontura: um temporal violento nos pegou na estrada e a minha coluna doía de forma quase insuportável. A tempestade e a dor na coluna desviaram a minha atenção. Após a reunião lá, comi um açaí. Aí a minha tontura aumentou. Como eu estava há quatro meses que não media meu colesterol, achei que era ele o culpado. Então, comprei um remédio e tomei.

Na verdade, tinha um fator a mais, a tirar a minha atenção. Eu também estava passando por uma crise fortíssima de hemorroida. Não falei, no texto original, por puro machismo e a ‘vergonha’ que este sentimento velho cria em nós. Eu havia, há dois meses, feito uma pequena cirurgia, mas, a crise continuava braba, dolorida e incômoda. Isso tirou muito a minha atenção da tontura. Quando temos várias dores no corpo, a gente acaba sentindo e dando atenção para aquelas que mais doem.

Dor na coluna, quase insuportável (eu havia tomado um comprimido de Tramal, próximo à ponte de Manoel Urbano, sobre o rio Purus), crise forte de hemorroida (com seis horas viajando de carro, numa estrada com trechos esburacados) e tontura forte. Às vezes, nós, seres humanos, vivemos pior do que os bichos. E, quando nos damos conta, já é tarde demais.

Ocultar uma doença, como fiz no relato original, em relação à hemorroida, é a prova de que, nós homens, somos ‘máquinas caminhando pro abismo’, orgulhosos pra não falar de nossas dores, quase não fazemos exames médicos (só fazemos quando chegamos no limite), não choramos (o choro é como uma chuva de bálsamos, alivia, descarrega, deixa leve), não calçamos as sandálias da humildade, que nos tira a obrigação machista de resolver tudo, de ter poder pra tudo e ver no dinheiro um tecido que compra inutilidades, quando devia servir apenas para cobrir as nossas necessidades.

No dia seguinte, em Tarauacá (400 km de Rio Branco), a tontura persistiu e se agravou. Eu segui participando de reuniões, sempre com a mesma tontura. No domingo, participei de nova reunião em Rio Branco, densa e complexa. E a tontura se tornava cada vez mais intensa. Eu quase não conseguia mais raciocinar. Não compreendo como não percebi que havia algo anormal. Foram cinco dias de tontura e eu não medi nenhuma vez a minha pressão arterial.

Já no leito da UTI, sozinho, fiquei imaginando como a gente não consegue perceber a dor das pessoas. Como a humanidade seria melhor e mais saudável, se tivéssemos como regra, perguntar como as pessoas estão. Eu estava, há cinco dias, abrindo as veias do meu coração e meus gânglios (meus enzimas deviam estar fervendo) para um infarto ou AVC e não percebia.

Na segunda-feira, a tontura continuou muito forte, mas, segui com agendas desde as 6:30 da manhã. À tarde, quando eu estava indo para uma agenda com o governador, para tratar demandas do saneamento, eu já estava sentindo dificuldades na respiração, sentindo frio e suando. Eu não conseguia sequer reagir aos cumprimentos dos assessores do gabinete governamental.

Quando percebi que se intensificava uma dor no peito, muita dificuldade em respirar e, mesmo sentindo frio, eu suava, então pedi ajuda. O SAMU foi acionado e fui levado ao Pronto-socorro. Do SAMU, passando pela Sala de Emergência e INTO, até a UTI do HUERB, eu fui tratado pelo SUS.

A MINHA EXPERIÊNCIA DE QUASE MORTE

Ali começou a minha experiência de quase morte, quando eu não conseguia falar ou fazer sinais físicos para que os médicos percebessem e me entendessem. Ouvia quando eles perguntavam a minha idade ou o mês em que estávamos. No começo, conseguia responder parcialmente. Depois, fui perdendo, rapidamente, a capacidade física de reagir aos estímulos. Ouvia quando eles perguntavam se eu era hipertenso, se eu era diabético, qual o remédio que eu tomava pra pressão arterial, se eu fumava.

Ouvi quando a enfermeira falou: “as veias dele fecharam, não tem como aplicar a injeção”. Percebi que, após a informação da enfermeira, nenhum procedimento médico foi feito, além de me introduzirem na máquina de tomografia. Então, compreendi que eles não tinham muita coisa a fazer, além de descobrir o que ocorrera dentro do meu corpo, especialmente na área cerebral. Naquela hora, fui formando uma convicção de que eu estava morrendo. Ouvia muito barulho na sala (soube, depois, que era a sala de emergência do PS), vi duas mulheres chorando, abraçadas, uma criança numa maca, sozinha, como se não tivesse pais, percebi muitos olhares curiosos para mim, como se eu fosse uma barata gigante numa sala de vidro, senti uma profunda solidão, apesar de ter ao lado médicos amigos e pessoas influentes, compreendi que eu havia permitido chegar àquela situação, que eu estava “morrendo de graça”, porque deixara “o meu corpo ao léu”, abandonará os mínimos cuidados que devia ter, como ser humano, sem contar que eu tinha condições de cuidar do meu corpo, eu não vivia nas ruas, eu não era um mendigo. Por isso, eu sentia uma revolta muito forte, quase sufocante, por ter deixado meu corpo chegar até ali, fragilizado, pressão descontrolada, veias fechadas, sem tato nos braços e nas pernas e sem conseguir falar.

Ali, eu vi o quanto são guerreiros aqueles profissionais. Foram agindo e me salvando, quase sem nenhuma informação médica sobre mim. Eles apertavam, com força, minhas pernas e meus braços, pra saber se eu estava sentindo. No início, eu reagia, mas, em seguida, eu não conseguia mais responder. Eu ouvia eles perguntando, mas, não sentia.

Lembro que eu ficava, na maca e no aparelho de tomografia, segurando os dois lados da minha calça (com os meus dedos), pra não permitir que meus braços descansassem no chão delas, porque eu achava que, se fizesse isso, eu estava me entregando. Ao resistir assim, até perder a sensibilidade, meus braços tremiam muito. Era quase insuportável, mas aguentei até onde deu.

Então, percebi que eles me colocaram numa máquina pra fazer algum tipo de exame, tipo uma tomografia. Não sei quanto tempo durou, mas, o que aconteceu comigo lá dentro, foi uma eternidade, a minha experiência de quase morte.

Quando a gente passa por uma situação de quase morte, o que se destaca não são as reações físicas, as dores ou a desconexão da sensibilidade dos teus órgãos, o que martiriza é a mente, os pensamentos que nos dominam. É como se a gente estivesse vivendo um pesadelo e não conseguisse acordar, como se estivéssemos sendo devorados pela falta de oxigênio no fundo do mar. O desespero é tão avassalador que a gente preferiria ser engolido por um tubarão do que viver aquela asfixia lenta, aquela falta de oxigênio com as mãos e as pernas paralisadas. Tua vida volta toda em poucos minutos. Talvez daqui a um milhão de anos a humanidade vá conseguir decifrar a nossa mente, porque é impressionante como conseguimos ver a nossa vida toda em alguns minutos, até acontecimentos que haviam sido deletados de nossa memória, como relâmpagos, voltam e vemos tudo, em detalhes. Há uma dor inominável de perceber que estamos morrendo e passamos a nos recriminar porque não resolvemos tudo que devia, por não ter amado mais, cuidado mais, por não ter abraçado as manhãs com mais otimismo e mais fé, por não ter vivido com mais liberdade, com mais sensibilidade, por não ter me orientado mais pelas minhas convicções, por ter permitido que qualquer lagarta devorasse as minhas rosas e qualquer cão invadisse e ainda ladrasse no meu jardim.

No aparelho de tomografia, percebi que a morte vem pela falta de sensibilidade dos meus órgãos, começando por um fenômeno terrível, que vai congelando a região do rosto da gente. Toda a minha região bucal ficou como se estivesse anestesiada, irradiando a dormência para o nariz, os olhos e a parte inferior dos ouvidos. Mas, eu ouvia longe os profissionais falando. Eu não sentia os meus pés e os meus braços. Era como se eles não existissem. Então, comecei a entender que estava morrendo e eu não podia fazer nada.

Minha mente estava intacta, mas, era como se meu corpo estivesse sendo consumido por uma máquina de anestesia, que triturava sem fazer barulho. Então, eu decidi organizar, na minha mente, a minha despedida. Mas, com uma revolta racional: eu não queria ir. Não aceitava morrer tão cedo. Vi meu velório e meus amigos. Eu ‘via’, nitidamente, todos eles, ao meu redor, o que diziam, seus semblantes. Foi terrível, uma dor que não se explica.

Apesar da revolta, entendi que era irreversível, que eu precisava fazer valer meus últimos pensamentos. Meu primeiro ato racional foi de perdão. Pedi perdão a todos que passaram pela minha vida e depois disse: ‘Deus, perdoa todos também! Que não aconteça nenhum mal a quem, por qualquer motivo, desde que eu nasci, me fez algum mal. Tudo isso é pequeno e insignificante, eu amo todos, meu amor é infinito agora! Cuida, também, da minha família!’ Senti uma paz imensa naquele instante.

Aí comecei a cantar, mentalmente, a canção que eu cantara quatro horas atrás, pra fazer minha neta Marina dormir: “uma dia uma criança me parou, olhou-me nos meus olhos a sorrir, caneta e papel na sua mão, tarefa escolar para cumprir, e perguntou no meio de um sorriso, o que é preciso para ser feliz? Amar como Jesus amou, sonhar como...”

Lembrei que, no final da manhã, Marina chegara da escola muito agitada, rebelde, inquieta, diferente de todos os outros dias. Foi com essa música que fiz a Marina dormir e voltei para o trabalho, as 15 horas. Naquele instante de quase morte, entendi que Marina estava prevendo algo, na sua inocência. Cantar aquela música, silenciosamente dentro da minha mente, naquele instante terrível, era como uma despedida carinhosa daquele pedacinho de gente que eu tanto amava.

Lembro ainda que, quando cheguei para almoçar, as 13:30 horas, disse para a minha mulher: “tem algo muito errado comigo. Ontem, domingo, tratei um assunto importante de trabalho com um de nossos dirigentes do Depasa, e hoje voltei a tratar. Eu, literalmente, esqueci hoje que já tinha tratado ontem. Acho que foi um sinal vermelho”. Só não sabia o que dizia o sinal.

ERA O PURGATÓRIO OU MINHA VIDA DE ANGÚSTIA?

Depois que cantei a música, uma porta gigantesca se abriu perante os olhos da minha mente: um abismo da cor do barro de um barranco do rio, como se fosse uma colossal planície entre montanhas silenciosas, que expeliam fumaça, com casas velhas sem telhado e sem portas. Figuras humanas se aproximavam e sussurravam palavras ininteligíveis pra mim, como se, desesperadamente, quisessem me avisar de algum perigo ou precisassem me ajudar. Vi que suas bocas e narizes eram apenas cicatrizes, e que havia um esforço imenso pra falar e respirar e não conseguiam. Seus olhos eram como dois ninhos de joão-de-barro, opacos e tristes, sem claridade, mas, havia um sinal distante de luz dentro deles, como aqueles pingos de canetas eletrônicas. Era como se passassem uma mensagem que havia alguma esperança, além da dor silenciosa, naquelas figuras mortas como o barro. Se aquela imagem fosse a do Purgatório, era algo comovente, assustador e esperançoso ao mesmo tempo.

UM SEGUNDO DE DEUS

Enquanto eu tentava entender aonde estava, uma tempestade de vento, como se fosse uma mão carinhosa e gigantesca, me arrastou para cima da montanha. Aí vi algo comovedor, uma mulher vestida de rosas. Não sei se era minha mãe ou era a Mãe de Jesus, só ouvi quando ela me disse: “meu filho”... Foi o instante em que senti vontade real de não voltar, de aceitar a morte como porta para aquele novo mundo, de abraçar aquela mulher e conhecer aquele mundo tão diferente, que pacificava a guerra que ainda ocorria na minha mente, como se fosse uma anestesia poderosa que, agora, desligava o meu cérebro, como última resistência da vida.

Não sei, também, se tudo foi apenas uma alucinação. Como poderia minha mente ‘ver’ tantas coisas e refletir sobre tantos cenários nunca vistos em tão pouco tempo? Lembrei que, quando sonhamos, principalmente quando é pesadelo, acreditamos que foram horas de sonho, mas, se comprova, depois, que foram apenas alguns segundos. O que sei é que senti e minha mente ‘viu’ todas essas situações fortes e sentimentais.

Então, ouvi outra voz, como se fosse um grito: “não desiste, Diniz! Luta!”

Foi quando percebi que estava sendo retirado do tubo da máquina de tomografia. Tentei sentir meu corpo e constatei que estava pior, braços e pernas sem tato nenhum e a região do rosto anestesiada. Tentei mexer minha mão, não conseguia, as penas, nada. Apenas conseguia abrir os olhos. Aí foi quando algo chamou minha atenção. Minha coluna doía e eu sentia calor, principalmente na região lombar. Nessa hora, eu decidi: vou lutar para que a dor que está na minha coluna vá para minhas pernas e meus braços, porque, naquela hora, dor era vida. Nesse instante pedi: “Deus, manda vida e dor para as minhas pernas e meus braços”! Fiz também um esforço tremendo para mover minhas bochechas, para comprimir a gengiva e os músculos do rosto, nada reagia, mas, continuei tentando.

Todo o esforço da minha mente era pedir vida a Deus para os meus órgãos que estavam falindo e repetir dezenas de vezes que eu não ia morrer. No leito da UTI, sozinho, fiquei horas pensando o que podemos fazer (sociedade, medicina e poder político) para ajudar pessoas em situações como a que eu vivi.

Percebi quando me colocaram numa maca e ouvia vozes distantes: “pode levar, ambulância, não tem mais o que fazer, grande amigo, não pode ser...” Nessa hora eu me desesperei e não conseguia reagir. Não era justo eu estar sendo levado para o necrotério, se eu ainda estava vivo.

Nunca senti tanta impotência e tanto desespero, perceber que estava morrendo e os meus amigos e profissionais que estavam ao redor já tinham feito o que era possível. Cada porta em que a maca batia, pra mim, já era a entrada do necrotério, mas, a pedra fria não aparecia. Meu pavor aumentava, porque comecei a imaginar a exumação, ainda vivo, pois eu sabia que meu cérebro estava vibrando e minha coluna doendo, apesar de não sentir o restante do corpo.

Naquela hora o meu desespero se tornou avassalador, foi ficando quase violento, surdo e mais intenso do que quando percebi que estava morrendo. Foi quando percebi que ainda estava vivo, mas, senti que estavam me tratando como morto ou quase morto, quando não vi mais nenhum procedimento médico pra me tirar daquela situação de insensibilidade dos meus órgãos. Era tanta a dor e tanto o medo na minha mente que prometi a mim mesmo que, se voltasse a viver, eu lutaria pela legalização da eutanásia (até isso pensei), porque não era justo alguém sofrer daquele jeito na hora da morte. Eram pensamentos confusos. Naquela hora passei a imaginar o que seria o Inferno. Se lá a dor da alma fosse igual a que eu estava sentindo, então, valeria qualquer sacrifício humano para evitar ir para os seus domínios.

Foi então que dois grandes sentimentos disputaram minha mente. O primeiro pedia que alguém me apagasse, que me dessem uma morfina, para estancar aquele sofrimento e não ser velado vivo, ou mesmo exumado e até sepultado. Foi horrível! Nessa hora, percebi o quanto a morte pode ser insuportável.

Queria tanto que alguém me ouvisse, que pudessem trazer rapidamente minha mulher e minhas filhas pra me abraçar. Nunca desejei tanto esse abraço, eu o queria mais que qualquer coisa. Eu sentia que não viveria mais, apenas queria um abraço. Lembro que eu suplicava, na minha mente, para que alguém baixasse a minha blusa (que havia sido levantada pra colocar os catéteres) e que tirassem do meu dedo aquele pequeno objeto que me incomodava tanto (oxímetro).

Então, a minha coluna voltou a doer mais fortemente e eu passei a lutar pela vida, com a convicção de que ainda podia viver. É algo que a gente não consegue expressar, é como se você estivesse caindo num abismo e apenas as asas de um beija-flor tentassem te sustentar. Naquele instante eu decidi que lutaria pela vida até a minha última gota de sangue, que era uma necessidade eu voltar, para dizer para as minhas filhas que a vida é mais preciosa que uma montanha de diamante, que todos nós devíamos mudar, que, se possível, até mexer na substância de nossas próprias almas, que nada valia mais que o oxigênio que a gente respirava todos os dias, sem pagar taxa nenhuma, que tudo passa, especialmente o que é feio perante a vida, mas, é eterno o que é belo do ponto de vista da espiritualidade, do amor, da solidariedade.

Eu rezei muito forte, com toda a vibração da minha mente, da minha alma e da minha coluna vertebral. Pedia força a Deus pra não aceitar morrer, não apagar, e mandava ordens para que a minha coluna vertebral, que pulsava de dor, liderasse minhas pernas e meus braços. Ali, compreendi que a dor era a minha porta de volta pra vida.

Mentalizei as várias cirurgias que fiz na boca e relembrei que a imagem de ficar tudo inchado era fictício, uma percepção enganosa da anestesia. Isso me deu ânimo, de que não havia sequelas na minha boca.

No meio dessa luta terrível entre a vida e a morte, ouvi a palavra INTO, aí compreendi que ainda estava no meio dos homens e que atravessava corredores e entrava numa ambulância. Acho que ali restabeleci a consciência parcial do meu corpo e passei a acreditar que a morte seria vencida, passei a falar e até raciocinar, como pedir que minha mulher me acompanhasse na ambulância.

Encerro esse relato terrível, mas, sentimental, considerando que, além do esforço e do carinho dos profissionais da saúde e da tecnologia, dois fatores externos também ajudaram a me salvar. Acredito que as minhas caminhadas e a minha dieta de açúcar foram importantes para que eu resistisse àquele vendaval da pressão arterial.

Todavia, acho que foi a área límbica (amorosa, elástica e aberta) do meu cérebro, que fez a principal resistência. Acho que amar as pessoas é a maior de todas as comportas contra essas tempestades que, a qualquer hora, atingem o nosso coração.

Num outro dia, eu escrevo sobre as pessoas que me ajudaram a vencer essa travessia e agradecer o carinho que veio de tanta gente.

CINCO DIAS DEPOIS

Quando um vendaval atinge uma casa e não a derruba, ela fica com rachaduras, telhas fora do lugar, animais assustados, os pássaros voam pra longe, móveis quebrados e, quem primeiro sofre a devastação, é o jardim e suas flores, as rosas, os jasmins. Aí, um vendaval menor pode voltar e destruí-la. Foi o que aconteceu comigo. Mas, o medo que me domina, hoje, sofre antídoto diário e permanente: primeiro, Deus e, por último, a minha mente.

NÃO MORREMOS NA UTI

Não consegui esquecer uma cena: vizinho a mim, na UTI, um velhinho estava entubado. Nos três dias em que fiquei lá, não vi ele mexer uma mão sequer. Eu ficava olhando, perplexo. E um único vivente não veio visitar aquele senhor. Então, eu aprendi, dolorosamente, que quem estava morrendo, não eram as pessoas que sofriam na UTI. Quem morria por dentro, todos os dias, eram os parentes e amigos que não iam visitar aquele velhinho.

Eu tenho plena convicção de que Deus parou a minha morte no meio do caminho, porque eu acredito que a eternidade está dentro da gente, num lugar especial da nossa mente. Creio que Deus é uma energia poderosa e amorosa, que habita a mente física dos seres humanos. E, quando você pede cura, Ele te dá. É só combinar com o nosso coração o jeito de pedir.

OS TRÊS MILAGRES

Quando eu entrei na sala de emergência do hospital, além do grave problema de pressão arterial, eu tinha dois outros problemas. Como já testemunhei, eu vivi um milagre: Deus me deu uma nova chance de vida.

Todavia, dois outros milagres aconteceram, que só agora decidi falar, porque eram quase inacreditáveis.

DOR NA COLUNA

Há dez meses que eu não sabia mais o que fazer, era tanta a dor, que eu cheguei a ter vontade de morrer. Minha coluna doía de forma insuportável, enquanto eu não me dopava.

Eu já tinha feito ressonância magnética duas vezes e me consultado com os melhores ortopedistas. Fiz RPG, fisioterapia e caminhadas. Aliviava, mas, a dor sempre voltava.

Tomar setenta gotas de Dipirona era como beber água. Nenhum analgésico aliviava a dor. Eu já estava usando Tramal, que também já não funcionava mais. Sentir dor permanente é algo que te desespera, mas, você faz tudo pra esconder dos amigos e da família, para que eles não sofram com você.

Eu usava remédio pra dormir: Rivotril ou Stylnox, às vezes, os dois juntos. Era a forma de me anestesiar, assim eu dormia e aquietava a dor.
Eu ficava contando as horas pra chegar a hora do almoço: aí eu tomava um comprimido de Stylnox, que me deixava meio que dormindo por uma hora e aliviava a dor. No dia que eu não podia fazer isso, era um sofrimento só. Nem minha mulher sabia que eu tomava esse remédio durante o dia.
A noite, eu tomava dois comprimidos ou doses pesadas de Rivotril. Viver assim, sentindo dor permanente, pegando um avião pra Brasília toda semana ida e volta, seis horas de voo sentado, participar de reuniões, audiências, sessões que iam até as 23 horas, sem família para almoçar e jantar comigo, rir para as câmaras de tv, disfarçar a dor, durante dez meses, não pode ter Purgatório pior.

HEMORROIDA

Na mesma data, comecei a sofrer uma crise de hemorroida. Foram dez meses de sofrimento. Usava todo tipo de remédio, caseiro, anti-inflamatórios, e fiz até uma pequena cirurgia, que não surtiu efeito.
O mesmo sofrimento da dor na coluna, dobrava com a hemorroida, viagens longas de avião, estradas esburacadas, reuniões cansativas. Tinha horas que eu pensava que Deus havia me abandonado ou estava testando a minha fé. Quando eu entrei naquele hospital, meu corpo estava muito sofrido e a minha fé abalada.

OS DOIS MILAGRES

Hoje, depois que Deus me livrou da morte, a minha hemorroida não me incomoda mais e a minha dor na coluna diminuiu 80%.

Se isso não foi milagre, o que foi então?

QUANDO UM MILAGRE MORRE A DOR QUE FICA É PROFUNDA

Exatamente vinte e cinco dias depois que saí da UTI, as minhas dores voltaram. As dores que haviam perdido intensidade, depois da minha experiência de quase morte: dor insuportável na coluna e crise permanente de hemorroida. Agora, eu estava mais angustiado, porque eu não tinha mais nenhuma saída. O milagre havia desaparecido e eu não contava mais que curaria com remédios, porque foram longos onze meses sem resultados.

As dores voltaram na segunda-feira, 11 de junho, mas, eu fiquei sempre aguardando que, no dia seguinte, elas iriam embora. E não foram. Na quinta-feira, 14, véspera de um feriado, eu caí na real. As dores estavam ficando insuportáveis e, então, pensei em recorrer aos velhos antibióticos e remédios pra dor.

Acho que não há nada pior do que a decepção de um milagre, porque é como se, de forma invisível, te tirassem o chão, te trancassem num quarto escuro e você não conseguisse, sequer, saber se havia porta, mesmo que sem chave.

O que fazer agora? Voltar aos antibióticos e analgésicos, que eu tinha usado tanto tempo e não tinham me curado? Voltar a sessões de fisioterapia, que eu não conseguia dar regularidade? Lembrei de cada remédio que eu tomava e sua ineficácia. Começar tudo de novo me angustiava.

Comecei a entrar em desespero, porque voltou todo o filme de dor, desesperança, desconforto e angústia dos meses anteriores. Será que Deus me abandonou? Será que estou pagando por algo que fiz? Deus é mesmo justo e se compadece de seus filhos ou é um Senhor poderoso e que apenas nos julga, como no Antigo Testamento?

Esses pensamentos turvos me dominavam e me tiravam a paz que eu havia experimentado nas últimas três semanas. O mais grave é que eu fiquei escondendo as minhas dores, porque revela-las era negar um milagre. Acho que esse foi o meu pior momento. Foi como ver o meu avião caindo e seguir rindo para os passageiros da poltrona do lado.

A quinta e sexta-feira seguintes foram inomináveis: voltou a tontura e, sempre próximo do meio dia, comecei a sentir zumbidos nos ouvidos, forte desconcentração no que ouvia, vista turva, o corpo febril e uma resistência às salas com ar condicionado. Eram os sintomas, em frequência mais baixa, do dia que que vivi minha experiência de quase morte.

Mas, o que mais incomodava, deixando um rastro de medo e de insegurança, era a impaciência que tomava conta da minha cabeça, uma irritação forte e sem explicação. Qualquer contradição me irritava e logo eu, que sempre fora compassivo e tolerante com as adversidades vinculadas à mente humana e ao convívio na família ou no trabalho, principalmente na política. Percebi que aquela crise profunda de pressão arterial mexera com meu sistema nervoso e com o pedaço do cérebro que coordena as nossas emoções.

Aí eu media a pressão arterial, tudo normal. Isso me deixava mais inseguro ainda, porque eu não conseguia identificar a causa daquele mal estar que me vinculava a uma experiência de quase morte. É algo que te angustia e te deixa fragilizado.

No domingo, no jogo do Brasil, com a família, foi um suplício: minha coluna doía se sentasse ou se deitasse. No final da tarde, decidi retomar as minhas caminhadas. Aí, enquanto caminhava, descobri que havia caminhado apenas quatro vezes durante as três semanas após a crise de pressão arterial. Eu, simplesmente, achei que estava curado e não precisava fazer nenhum esforço pra manter a cura. Eu achava que Deus tinha a obrigação de fazer tudo.

Enquanto caminhava, sozinho, fiquei a pensar sobre aquele milagre incompleto, que me devolvera a vida, mas, não me curara.

Sentindo dores na coluna, enquanto caminhava, lembrei que, após fazer duas tomografias computadorizadas, consultei quatro bons especialistas, com o resultado das tomografias nas mãos. Dois me disseram que eu tinha um princípio de hérnia de disco e dois afirmaram que minha coluna vertebral não apresentava nenhuma lesão.

Como podia um princípio de hérnia de disco doer tanto? Eu não ouvia meus amigos, que tinham duas, três hérnias de disco, reclamando tanto de dores como eu.

OS MILAGRES ABREM OS OLHOS DA GENTE

Mas, a palavra milagre não saía da minha cabeça. O que havia acontecido mesmo naquele 14 de maio? Estaria Deus me testando ou milagres não existem?

Decidi me concentrar naquele 14 de maio e tentar lembrar e entender o que aconteceu com o milagre que, supostamente, havia perdido metade de sua força. Deus me restituíra a vida, mas, tinha permitido a volta das minhas dores.

Foi quando um relâmpago atingiu minha mente, literalmente, um relâmpago. Pois eu vi a entrada luminosa de uma montanha, por onde entrei, e revivi todas as imagens mentais da minha quase morte. Percebi que aquela montanha iluminada por dentro era o meu próprio cérebro.

Agora, eu via claramente o milagre. Deus me dera a oportunidade de viver novamente e mudar meus hábitos e minha relação com as pessoas e com o mundo de forma radical. Eu não tinha o direito de subestimar a vida que Ele me devolvera e ainda duvidar de seus prodigiosos milagres.

Deus pedia que eu olhasse com mais rigor para as minhas dores e tentasse identificar de onde elas vinham e o que fazer para cura-las. Foi quando descobri que as dores da minha coluna, na região lombar, aumentavam quando piorava minha crise de hemorroida.

Passei, então, a cuidar com mais rigor da minha hemorroida, sem descuidar da coluna, com exercícios de alongamento e outras providências de tratamento. Percebi, também, que precisava equilibrar o meu corpo, reduzir minhas taxas de açúcar, colesterol e triglicérides e desintoxicar tudo de nocivo que acumulei nos últimos cinquenta anos.

Minha primeira decisão foi radical: fazer caminhadas, todos os dias, as cinco da manhã, inclusive, aos domingos. Isso não é fácil. Um simples esmorecimento faz você desistir, basta dizer: "só vou faltar hoje". Aí começa o fracasso.

Todavia, preciso dizer que falhei, que, depois de um mês de caminhadas, parei por quase três semanas. Estou descobrindo que lutar pela vida é mais árduo do que passar num concurso público ou ganhar uma eleição. É preciso ter disciplina, mas, ao mesmo tempo, tornar essa disciplina em algo como respirar ou beber água, fazer com gosto aquilo que, no começo, parece cansativo e exige renúncia, energia física e vontade espiritual.

Decidi, também, aumentar o rigor na minha dieta de açúcar, descartando esse elemento perigoso, que mata mais do que a pólvora na civilização do século vinte e um. Pra se der uma ideia, são assassinadas, anualmente, 2,5 milhões de pessoas com armas de fogo (pólvora) e em guerras no mundo. Já a diabetes (açúcar) mata 4,5 milhões de pessoas por ano.

Passei a usar remédio natural para a minha hemorroida, feito de plantas que combatem a inflamação das veias. Passei, também, a ingerir, em jejum, água com limão. Todas as pessoas mais antigas aconselham, como tratamento natural para reduzir nossas taxas de colesterol, eliminar toxinas, melhorar a digestão e a pressão arterial, combater doenças vinculadas ao sistema respiratório e nos fornecer a milagrosa vitamina C. Outras providências, vinculadas a uma alimentação mais saudável, foram tomadas, apesar de reconhecer que essa parte da vida é a mais difícil, porque a humanidade decidiu que mais da metade do que ela come é porcaria, em tudo sobra açúcar e sal e as frituras dominam os restaurantes e lanchonetes, como as moscas dominam os lixões.

Depois de ouvir três pessoas de acentuada idade e que sofreram derrames cerebrais (uma delas já havia sofridos três), decidi, toda manhã, tomar vinte gotas de ‘aguardente alemã’, misturadas em pouca água. As pessoas que haviam sofrido esse brutal ataque do seu sistema arterial, passaram a usar aguardente alemã e não tiveram mais nenhuma recorrência. É lógico que não estou aconselhando ninguém a usar, porque não há prescrição médica e nem é remédio natural, como o uso do limão. Apenas estou reconhecendo que a profunda irritação diminuiu fortemente e eu me sinto mais seguro.

Entendi que o grande milagre foi Deus permitir que eu visse o caminho da minha cura, que era um caminho longo, uma cura a longo prazo, que exigia renúncia e sacrifícios, mas, que seria duradoura. Agora, eu compreendia Deus, não como um remédio, mas, como um mateiro, que abre a picada na mata, te indicando os lugares de cura, as árvores nas quais você pode colher frutos e as fontes de água viva, pra matar minha sede e limpar o lixo do meu corpo.

Cada dia, depois da minha quase morte, me esforço para olhar as pessoas por dentro. O que tenho conseguido perceber é assustador e, ao mesmo tempo, magnífico. Há pessoas belas por fora, poderosas, mas, que precisam de tratamento interior urgente, porque estão com suas almas comprometidas, todavia, a gente não pode fazer nada, porque elas estão convictas de que são os habitantes mais importantes do planeta e as almas mais próximas de Deus. Por outro lado, o rigor do meu olhar, tem encontrado pedras preciosas nas ruas mais escuras e nos becos mais abandonados. Pessoas humildes, das funções mais simples, tem me surpreendido com a sua nobreza e a sua sabedoria. É como se fossem anjos que não tiveram a oportunidade de usar suas asas.

Encerro esse relato, com a convicção de que o maior milagre foi Deus ter iluminado a minha mente e aberto os meus olhos. Deus transforma uma pedra num pássaro, como pode transformar um pássaro numa pedra. A gente é quem escolha se quer ser pedra ou pássaro.

O milagre de Deus se agiganta no homem, quando há, em nós, vontade férrea, fé, compaixão e amor de fraternidade. Não ganhei apenas uma vida nova, eu fui presenteado com um conteúdo especial de olhar o mundo e enfrentar meus abismos. Compreendi que o grande milagre tinha sido o meu retorno à vida, minha quase ressurreição, capaz de administrar minhas dores e cura-las a longo prazo, me livrar dos antibióticos e anti-inflamatórios, que estavam destruindo meu estômago, dilacerando a minha esperança e criando um névoa de desespero, quando se passavam meses e eu não sentia melhora, apenas algum alívio passageiro.

O milagre estava no meu jeito, agora revolucionário, de olhar o mundo, de perdoar como se fosse a minha respiração, de olhar mais para o interior das pessoas, de ver o semelhante como criatura de Deus, de amar a grama do jardim, aquela rosa quieta, aqueles prédios e o labuta de seus operários, as árvores que, agora, eu sentia que também respiravam, perceber os seres humanos fragilizados nas ruas, os hospitais, além de um lugar de dor, um espaço pra perceber e divulgar milagres, igrejas ficaram mais perto do meu coração, já não via pecado da usura, percebia ternura na palavra do pastor, passei a ficar mais tempo com a família, a vigiar e tentar controlar meu estresse e as palavras que ferem, comecei a falar com a Kika, a cachorrinha lá de casa, e me perguntar se as formigas não sentiam dor quando eu as esmagava sob os meus pés, olhar as estrelas como mundos reais do espírito humano, ver o universo infinito como lar daqueles que já partiram, e abraçar o ar da manhã como se fosse gente.

Na verdade, o grande milagre, naquele hospital, foi perceber as digitais de Deus nas coisas ao meu redor e no meu semelhante.

Moisés Diniz - Membro da academia acreana de letras.

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