terça-feira, 26 de novembro de 2019

MEU TEMPO DE CRIANÇA NOS SERINGAIS DO RIO MURU - parte 5

Por: Txai Antônio Macêdo
Da colocação Currimboque a cidade de Tarauacá

Diante a situação de saúde da minha mãe e por necessidade de que seus filhos frequentassem escolas, meu pai decidiu voltar da colocação Currimboque para a cidade de Tarauacá. Nessa época eu estava com doze anos de idade...

Nosso retorno foi muito trabalhoso, pois, assim como foi quando nos mudamos para a colocação, tivemos que levar todas nossas ‘tralhas’ nas canoas igarapé abaixo a até desaguar no Rio Muru outra vez. E assim descemos o igarapé São José, matando paca para fazer nosso rancho da viagem. 

Pernoitamos a última noite de descida na colocação de seu José de Castro. Quando chegamos nessa colocação recebemos a notícia de uma festa que aconteceria naquela noite, na casa de seu Agenor Moura, localizada na margem do Rio Muru e logo abaixo da foz do Igarapé São José. Eu e meus irmãos ainda nos animamos para chegar a festa naquela noite, mas meu pai e minha mãe não permitiram, por isso nos acalmamos e ficamos conformados com a decisão. No dia seguinte saímos na confluência do rio Muru e dali era só descer até a cidade. Mal havíamos começado a descida, e, ao cruzar com outros viajantes, logo ficamos sabendo dos boatos da festa.

Cito como exemplo o que aconteceu entre os seringueiros Valdir Machado e Francisco Felizardo...
Valdir namorava uma moça de nome Maria Moura que, por sinal, era a mais bonita do seringal Colombo. Valdir já era criminoso: Havia matado Nicodemos, um grande valentão ‘de má conduta’, segundo os mais velhos me contavam. - Do outro lado da história tinha o Francisco Felizardo, que também já havia matado outro seringueiro. Ambos eram apaixonados por Maria Moura e de forma alguma, Francisco Felizardo aceitava o namoro de Valdir Machado com sua ‘pretendida’. 

Ambos se toparam na noite da festa, na casa de seu Agenor Moura, que era o genitor de Maria Moura. Mal se encontraram, os dois pretendentes decidiram travar travar um duelo sangrento: brigaram muito e, em dado momento, utilizando as temidas ‘facas peixeira de 12 polegadas’ furaram e se cortaram mutuamente, até morrerem caindo um para cada lado.
Maria Moura, dona de muita beleza, continuou sua vida, vindo, tempo depois, a se casar com um novo e sortudo homem da região.

A descida continuou até voltarmos para a cidade, onde nos hospedamos em uma casa alugada. Minha mãe foi logo cuidar de fazer o tratamento com o Dr Tomé, alcançando, ao término desse, sucesso em recuperar sua saúde. Quanto a mim, fui estudar no jardim da infância do Grupo Escolar João Ribeiro.

Vejam bem: naquele tempo não se diziam muitos dos termos e palavras que se ouve hoje em dia. Muito menos nos seringais.

Assim, quando entrei na escola começou o jogo das novas palavras e de outros acontecimentos muitas vezes inevitáveis…

Um belo dia, logo de manhã, no decorrer dos primeiros dias de aula, comecei a ouvir coisas totalmente desconhecidas na sala de aula - e confesso que eu não entendia bulhufas de nada. Era algo como um ronco muito forte que entrou em funcionamento na proximidade da escola e, quando aquilo aconteceu, me assustei e quis saber das outras crianças do que se tratava, e logo me responderam que era um caminhão. Mas, eu ainda não sabia o que era um caminhão e nem o que era uma garagem. Acontece que nessa manhã um caminhão, que naquele dia estava sem o escapamento, foi posto em funcionamento dentro da garagem que se localizava logo atrás da minha escola. 

Claro que insisti perguntando aos coleguinhas o que era aquilo. Eles foram compreensivos e objetivos, me explicando sobre o caminhão “que ia sair da garagem e que ia devorar toda cidade”!

Assustado fiquei: Caminhão? Garagem? - O complemento “devorar toda cidade” invadiu a minha cabeça, e eu fiquei preocupado com minha mãe, e minhas irmãs, que podiam ser todos devorados pelo bicho que eu ainda não conhecia. Esse bendito caminhão, foi o terror que invadiu os meus pensamentos naquele dia.

O que fiz? Respondo: Abandonei a sala de aula e de forma disparada sai na carreira para alcançar minha família antes de serem devorados por aquele bicho desconhecido.
A casa onde minha família morava ficava a uns dois quilômetros da sede da escola. Corri, corri e chegou um momento que minha aflição era tanta, que me urinei por completo, vindo a me agarrar no tronco de uma cajarana, localizada a beira da rua Constância de Menezes, pela qual eu ia correndo.

Chegando em casa, muito apavorado, peguei minha mãe pela beira do vestido e minhas irmãs e sai arrastando casa afora, puxando um ‘um cordão de mulheres’. Meu objetivo era era atravessar o Rio Tarauacá na confluência com o Rio Muru, me embrenhar floresta à dentro, até chegar onde se encontrava meu pai, que nesse dia estava numa colocação na margem do rio, em frente a aldeia Kaxinawá da foz do igarapé do Caucho. Eu procurava meu pai para com ele somar qualquer esforço que fosse necessário contra o bicho-caminhão, que estava saindo da garagem, e segundo aqueles meninos da escola, ia devorar toda cidade.

Durante minha aflição eu havia gritado muito com minha família, para que corressem junto comigo, mas eles não conseguiam entender nada do que realmente estava acontecendo. Até que de súbito apareceram os vizinhos de minha mãe e, ao entenderem o que se passava e perceberem o que estava acontecendo na minha cabeça, no meu estado nervoso, me convenceram a sossegar, me explicando o que era um caminhão, desmentindo aquilo que os meninos da escola, os meus colegas, ainda desconhecidos, haviam me falado.

A cidade era para nós um abismo, e a floresta era a nossa verdadeira casa. O que mais eu ficaria fazendo ali? Procurei convencer meu pai a me levar pra floresta de volta pra casa onde nasci e fui criado até irmos pra cidade. Foi quando ele decidiu me levar dali e voltei para morar com meu pai, junto aos Huni Kuin do Caucho. 

E novamente comecei uma nova diáspora: da cidade de Tarauacá a aldeia Kaxinawá do igarapé do Caucho...

Tudo ali andava muito bem entre nós e os indígenas, todos estes vizinhos do meu pai. Eu e ele morávamos sozinhos e trabalhávamos para manter a minha mãe morando lá na cidade com minhas irmãs, que ainda eram menores nessa época. Meu irmão mais velho, Raimundo Batista de Macêdo já havia se casado e morava relativamente perto de mim e meu pai. E nesta convivência cheguei aos treze anos de idade.

Neste local trabalhávamos com criação de animais e agricultura, vivendo praticamente junto com o povo indígena Kaxinawá da aldeia Foz do Igarapé do Caucho, no Rio Muru. Ali vivi até meus quinze anos de idade, e sempre estudando com a professora Diva, na escola que ficava na colocação 18 Praias.

Numa noite de festa na aldeia Kaxinawá da Boca do Igarapé do Caucho, na casa de Chico Luiz, filho do velho Tuxaua Luiz Francisco. Essas festas eram animadas pelos bons sanfoneiros Isídio e Simão, dois irmãos nordestinos que moravam na cidade de Tarauacá, e que quando contratados pelos indígenas iam tocar na aldeia. Mas, nesse dia, o medo tomou conta de todos os presentes, pois, o policial Pedro Leonel e seu irmão Pedro Dá, os quais se diziam donos do Seringal Tamandaré, que era totalmente ocupado pelos Kaxinawá, invadiram a aldeia, armados e tomaram tudo que os índios tinham em suas casas: Espingardas, machados, terçados, enxadas dentre outros pertences dos índios.

Meu irmão mais velho, Raimundo Batista de Macêdo, aquele que havia feito o patrão tirar sua conta corrente numa barra de sabão*, e João Herculano, enfrentaram os patrões policiais e fizeram eles devolverem tudo que estavam levando dos índios, pois, aquele ato praticado pelo policial era imoral e meu irmão e seu amigo não aceitaram isso. A coragem desse meu irmão era grande e o seu senso de humanidade era bem maior, no entanto, sua atitude naquela situação foi muito perigosa para todos que se encontrava naquela Aldeia.

Mas esse enfrentamento começou com minha intervenção, pois, fiquei tremendamente preocupado e, mesmo ainda criança, não agüentava ver aquela injustiça contra os pobres índios, nossos amigos. Por isso, quando vi o policial fazendo aquela arbitrariedade contra eles, não me contive e procurei meu irmão, que também estava na festa. Mostrei e ele o que estava acontecendo e, sem medir o esforço, foi pra cima do policial, que naquele instante, apontou sua arma para ele. Nesse momento, meu irmão encostou seu punhal no peito do policial e falou: “Aperta o gatilho, porque vou derramar tuas tripas, ou então, entregue os pertences dos índios”. - Eu vi que uma arma estava apontada para o meu irmão e fui chamar o João Herculano para ajudar. João tirou o revólver da mão do policial com um pequeno golpe com o pé na mão do arrogante.
Eu fui crescendo naquela aldeia, junto com seus ocupantes, conhecendo seus costumes e tradições, que era diferente, mas, fui aprendendo e, também ensinando os txais conforme seu próprio modo de vida naquele lugar.

Anos depois, após concluir o segundo ano primário, fui morar novamente na cidade de Tarauacá, para estudar com a professora Ritinha Catão, no Grupo Escolar João Ribeiro, escola essa que até os dias atuais está localizada na Praça Valério Caldas de Magalhães no centro da cidade. Foi nessa escola onde cursei até a 4ª série primária.

No fundo dessa praça funcionava o bar do seu Julebaldo que, também uma sorveteria. Eu e meu irmão Luiz Gonzaga Caetano Barbosa íamos para a escola, mas, nenhum de nós tinha dinheiro no bolso para comprar um picolé. Os filhos dos moradores mais antigos ali da cidade compravam picolé sorvete, e a gente ficava olhando aquilo com água na boca, pensando como seria gostoso poder também conseguir uns. 

Meu irmão um pouco mais encapetado do que eu, levava para a escola uma sonrisal no bolso do uniforme, e nas primeiras vezes que ele fez isso eu não sabia das suas atitudes, e olha que ele era um ano mais novo de que eu. Só que depois descobri, e pude perceber qual seu engenhoso plano. Pois bem…

O caso é que como ele (Gonzaga) não podia comprar um picolé, esperava que os filhos das famílias mais ricas da cidade comprassem, para que ele pudesse tomar o picolé das mãos dos garotos ricos.

Quando ele pegava o picolé saia correndo e a meninada corria atrás. Ele ai, quebrava o sonrisal e colocava um pedacinho da pílula na boca, e caia no chão espumando pelos cantos da boca, tempo suficiente, para que eu chegasse e afastasse a meninada de cima dele, dando petelecos, tendo como pretexto que ele estava supostamente passando mal. Era perigoso, mas que foram engraçadas aquelas terríveis proezas aprontadas pelo Gonzaga, a isso foram. Os meninos que perderam os picolés quando aquilo acontecia, ficavam muito assustados temendo terem causado um por terem derribado o Gonzaga.

Da Escola na cidade aos seringais do Rio Iboiaçu no alto rio Muru.

Eu ainda contava só 14 anos quando meu pai juntamente com o velho Chagas Kaxinawa, a quem eu chamava de companheiro, decidiram subir o Rio Muru praticamente todo, e em seguida, subir o Rio Iboiaçu até o seringal São João. Meu pai me levou para esta viagem com ele. Nossa canoa tripulada somente por mim, meu pai e o Chagas Kaxinawa, era uma canoa feita de tábuas, com capacidade para mil e quinhentos quilos de carga.

Nossa viagem era tangida a remo, faia, sisga e varejão. Passamos 11 dias subindo o Rio Muru e 04 dias subindo o Rio Iboiaçu, 15 dias varejando na popa daquela canoa.
Desenrolamos muitas curvas, estirões e cachoeiras até chegar ao seringal 
denominado São João. Nesta viagem, ainda ajudei meu pai e o companheiro Chagas a montar uma armadilha para pegar um Gato Maracajá; e pegamos aquele Gato muito bravo.
Na verdade, tratava-se de uma caçada, que eu terminei também transformando em uma pescaria. Tanto tinha muita caça na floresta deste lugar quanto tinha muito peixe no Rio Iboiaçu.Ali peguei o primeiro Jundiá manteiga, o Jundiá amarelo, também pesquei Jau ou Jundiá Açu, Piroaca, surubim, Caparari, Pirapitinga, Bacu e Bacurana.

No Rio Iboiaçu, meu pai localizou em uma cachoeira o casco de uma tartaruga gigante quase do tamanho de uma canoa. O casco estava quebrado, e havia sido por conta da atividade madeireira antes realizada ao longo daquele Rio. Uma grande tora de madeira que descia no rio bateu-se no casco da antiga tartaruga quebrando o casco da mesma, que ficou ali mesmo, e deve está lá até hoje.

A viagem não logrou muito êxito pensando do ponto de vista dos caçadores adultos, mas, para mim, apesar do cansaço foi quando peguei os maiores peixes que conheci até ali. Passamos ali duas semanas na floresta do Iboiaçu.

Matamos quase nada de caça, deu água no Rio, e então meu pai decidiu junto com o companheiro Chagas ir baixando, e fomos embora pra casa. Eu já estava com saudades da minha mãe, apesar de estar gostando de estar naquela aventura. Meu pai sábio o quanto era é que não perdia aquela oportunidade de aproveitar as águas grandes dos rios, para que pudéssemos chegar para nossa casa rápido, e ao sabor da correnteza das águas. E assim foi feito.

...No Acre, especialmente, na cidade de Tarauacá, além de seringueiro fui também agricultor, estivador, marinheiro prático trabalhando nas embarcações marítimas, vivi um tempo como pescador, e depois de ser basicamente forçado a servir ao Exército brasileiro, fui operador de máquinas pesadas e mecânico de autos-motores.

Antônio Batista de Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma figura importantíssima para o indigenismo e para os povos indígenas no Acre. Juntamente figuras como com Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma memória viva do que foram os anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e tristezas em prol das questões indígenas nesse rincão da Amazônia. Vivas a esse grande txai, cuja história merece ser contada e recontada por quem admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima)

* Essa história foi contada em outro texto do Txai Macêdo, clique aqui para ler este texto.
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- Créditos das imagens: Imagem 1 - pintura da artista Antonia 'Feio'; Imagem 2 - Festa no seringal, Blog O Paneiro; Imagem 3 - Blog do Cerezo; Imagem 4 - Site Novica; Imagem 5 - 

Postado por Cronistas às 04:16:00

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