*Moisés
Diniz*
E a cada ataque militar, a cada
lamento de crianças dilaceradas ou de seus pais, com angústia de fazer chorar,
eu lia artigos luxuosos de intelectuais doentes, tentando explicar o ataque,
encontrar um jeitinho sem-vergonha de legitimar a morte que se espalhava sob os
estilhaços dos fuzis dos marines criminosos ou de drones mortais.
Havia um pântano intelectual aonde
esses lobos das letras devoravam suas ovelhas africanas, palestinas ou
islâmicas. Eles se assumiam como intelectuais conservadores, outros, de
direita, opostos a um mundo que trouxesse algum sobrenome que falasse de
islamismo, de terceiro mundo, de nacionalismo, de socialismo ou de movimentos
de guerrilha (uma espécie de guerra permitida aos mais fracos) ou de qualquer
resistência dos povos oprimidos, colonizados, escravizados, famintos e doentes.
Quem lia aqueles artigos doentes,
apodrecidos, dementes, se exasperava, mas, sabia que era ‘normal’ aqueles
textos de esgoto, pois vinham de gente que conseguia encontrar argumentos até
para o holocausto nazista ou para as ditaduras militares e suas carnificinas.
Arrancar Saddam Hussein de um buraco, como um rato, e depois enforcá-lo, no
YouTube, provocou glamour nas altas rodas sociais, até naqueles que, no seu
país, são contra a pena de morte.
Agora, nós estamos mais incomodados,
mais desconfiados, mais tristes. É que os artigos que eu estou lendo pertencem
a intelectuais que, até outro dia, viam na vida humana o bem maior do universo.
E a sua argumentação era forte porque suas letras nasciam do ventre da
esperança humana e de suas dores profundas. Eram intelectuais de esquerda,
protegiam nossa gente perdida e seviciada pelos quatro cantos do planeta, com
sua escrita poderosa, iluminada e humanista.
E por que estão a escrever sobre o
assassinato de jornalistas do Charlie Hebdo de um jeito novo, perverso, como
faziam seus adversários intelectuais, construindo argumentos para explicar o
crime? O que angustia é que são muitos e muito respeitáveis. Apresentarei,
aqui, apenas os mais perspicazes.
O ex-padre Leonardo Boff escreve o
artigo ‘Je ne suis pas Charlie: Eu não sou Charlie’ (https://leonardoboff.wordpress.com/2015/01/10/eu-nao-sou-charlie-je-ne-suis-pas-charlie/),
em indisfarçável contraposição ao movimento ‘Je Suis Charlie: Eu sou Charlie’.
Leia e constate, a base do artigo é
encontrar uma explicação para o que aconteceu. A sua profunda teologia, apesar
de amorosa, sem querer, visita os cemitérios e leva o leitor comum a duvidar de
que a vida humana é suprema em qualquer situação. Talvez, porque o nobre
escriba tenha vivido muito tempo explicando a morte de Abel, o afogamento de
quase toda a raça humana no dilúvio ou as terríveis pestes egípcias, que
incluíram até a morte de uma criança inocente, o filho do faraó, apesar de
padres e pastores atuais sempre entenderem de outro jeito.
O artigo do ilustre Leonardo Boff
ficou meio que com cheiro de incenso. Na verdade, amigo doutor da lei, me
desculpe a comparação. Mas, ficou meio esquisito, como aquela tese vilã, de que
a mulher que usa minissaia está pedindo para ser estuprada. Eu fico pensando
como o senhor vai abordar, a partir desse artigo, a questão do aborto, porque
há mulheres que matam seus fetos e usam argumentos assemelhados. No prisma da ofensa,
o que é mais grave? Uma charge que ofende Muhammad ou um estupro? Os dois podem
legitimar a morte?
Os artigos brotam como lagartas
velhas vestidas de anjos novos. José Antônio Lima, escrevendo o editorial da
prestigiada revista Carta Capital (http://www.cartacapital.com.br/internacional/charlie-hebdo-a-culpa-da-arabia-saudita-3209.html),
vai logo proclamando: ‘Charlie Hebdo: a culpa (é) da Arábia Saudita’,
introduzindo o petróleo e a geopolítica nas causas dos assassinatos, talvez, o
assunto que já tenha mais produzido teses de doutorado no planeta.
E eu, um pobre leitor do norte do
Brasil, pensava que esses intelectuais soubessem que o petróleo já produziu
mais mortes do que dois milhões de dilúvios (levando-se em conta a população do
tempo de Noé), cevou ditadores com base no soldo dos países ricos e
importadores de óleo cru (como EUA e Europa) e depois os descartou e os
exterminou como ratos, enforcando Saddam Hussein e executando Muammar Gaddafi e
alimentou o ódio que produz os terroristas de todo tipo e suas vestes de
dinamite.
Só não acreditava que esses
intelectuais, com a sua história e o seu conteúdo, escreveriam tantas teses para
explicar os assassinatos, ao tempo hábil de depositar suas laudas nos caixões
ainda abertos dos jornalistas do Charlie Hebdo. Que compreenderiam que qualquer
intelectual, qualquer homo erectus deveria condenar com veemência (sem mas ou
todavia) esse ataque terrorista e, com mais rigor, olhar para o alvo central
dos disparos letais: a liberdade de expressão, mesmo que seja do tipo mais
hostil.
A fila é longa, conceituada e
ilustre, mas, eu vou encerrar com aquele que construiu o mais engenhoso dos
argumentos, talvez, o que traz mais novidade sobre o atentado, que ele chama de
meta-terrorismo: Wilson Roberto Vieira Ferreira, que escreveu, no Portal Fórum:
‘O atentado ao Charlie Hebdo foi um filme mal produzido? (http://www.revistaforum.com.br/cinegnose/2015/01/09/o-atentado-ao-charlie-hebdo-foi-um-filme-mal-produzido/).
A base do artigo é a conspiração,
altamente padronizada e eficiente, aonde o poder dos grandes capitalistas
ocidentais e de seus governos organizam o atentado, com o fim último, a grosso
modo, de ressuscitar o desgastado François Hollande, oxigenar
eleitoralmente a extrema-direita de Marine Le-Pen e até abrir as portas, como
ocorreu com o 11 de setembro em relação ao Iraque e ao Afeganistão, para que os
EUA possam bombardear e controlar militarmente o Iêmen, aonde se situa o
estreito de Bab el-Mandeb, um dos sete pontos que os norte-americanos
consideram gargalos para o transporte de petróleo.
Sobrou até para a imprensa brasileira
que, segundo esse engenhoso argumento, estaria utilizando o atentado ao Charlie
Hebdo para desconstruir a tentativa de regulação da mídia. Eu fico pensando
(Deus me livre desses meus pensamentos), se esse intelectual estivesse, naquela
hora fatídica do atentado, escrevendo o seu artigo na sede do Charlie Hebdo.
Como se vê, o problema não está na
argumentação, porque, se quiséssemos, publicaríamos mais uma centena de artigos
e argumentos não faltariam, essencialmente, para a morte do humanismo que nos
alimentou nesses anos. E ele não foi ingênuo, foi radical, porque era a alma
gêmea de nossas letras revolucionárias, a fonte da juventude de nossas utopias,
a espiritualidade que protegia nossos versos indóceis e até, muitas vezes,
próximos da letalidade.
Agora, com a tentativa de explicar a
morte, de transformar em gelo o sangue dos jornalistas franceses (ásperos,
irreverentes, teimosos), nós vamos ter dificuldade de ser diferente, de
continuar entendendo a engrenagem da morte imperialista, mas, capazes de nunca
abraçar, nem com as letras, a irracionalidade dessa gente infame do EI, do
Exército islâmico e de seus iguais.
O que esses intelectuais disseram
quando tentaram assassinar o Papa João Paulo II? E, se um maldito atentado
terrorista atingisse a casa de descanso de Fidel Castro ou o palácio indígena
de Evo Morales? Qual seria o argumento se, lamentável e perversamente, um
atentado terrorista atingisse um de seus familiares? Apelação argumentativa?
Acho que não, apenas uma indelével nódoa boa, que grudou em mim, do tempo em
que defender a vida era a marca do nosso humanismo.
Contra o terror não tem conversa, não
tem tese de doutorado e nem poesia. Venha de onde vier, tenha a causa que
tiver, deve ser combatido com a energia inconfundível das liberdades civis e da
força do Estado de direito, seja de esquerda, seja de direita, e levantar as
multidões.
* Moisés Diniz é membro
da Academia Acreana de Letras e autor do livro O Santo de Deus.