sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Eleições, participação e cultura política: mudanças e continuidades

INTRODUÇÃO

As eleições presidenciais de 1989 confirmaram o diagnóstico de que, no Brasil, os eleitores usam o voto como arma para sancionar positiva ou negativamente o desempenho dos governos, particularmente, a sua capacidade para gerenciarem adequadamente a grave situação econômica enfrentada pelo país nas últimas décadas. Quase trinta anos depois das últimas eleições livres para presidente da República, por toda parte e em todos os seus segmentos, os eleitores mostraram o aprofundamento da tendência plebiscitária que tem se manifestado, principalmente, nas regiões mais desenvolvidas do país, isto é, do Brasil moderno. Na história política recente, essa tendência generalizou-se nos anos 70, com a crise do regime autoritário: colocados diante da opção do bipartidarismo tutelado (Arena e PMDB), os eleitores protestavam votando contra o autoritarismo e, em tese, a favor da democracia. Agora, o regime autoritário não existe mais, a democracia procura consolidar-se, mas os eleitores continuam votando contra, isto é, rejeitando o governo do dia (a eleição de 86 sendo a única exceção). A grande novidade, entretanto, é que, agora, junto com a rejeição dos governos considerados incapazes, os eleitores protestam, também, contra o arcaísmo da tradição política brasileira, particularmente, as práticas de corrupção, favoritismo e privatismo1.

De fato, a maioria das análises que tentam explicar o voto popular em 1989 enfatizam a percepção social da profunda crise moral e política que, desde o início da Nova República, tem afetado tanto a imagem dos políticos, como o funcionamento das instituições do nascente regime democrático brasileiro. Pará parcelas cada vez mais amplas da opinião pública, a malversação dos fundos públicos, os escândalos envolvendo autoridades do governo e dos legislativos, as práticas de clientelismo e de prebendalismo, as dificuldades que impedem a participação dos cidadãos - tudo aparece, senão como a principal causa, como aspectos fortemente relacionados com a maior parte dos problemas que afetam a vida da população (miséria, inflação, desemprego, etc). Em conseqüência, como têm mostrado inúmeras pesquisas de opinião, a maior parte dos eleitores simplesmente revelam não confiar nos políticos e avaliam com enorme severidade o desempenho das instituições de representação. Trata-se, como já foi assinalado para outros países da América Latina que passaram por processos de transição semelhantes, como Argentina, Uruguai e Peru, de sinais evidentes de uma crise de representação ou, quando menos, de indícios de dissolução (ou de dificuldade para a constituição) de vínculos mais profundos entre os cidadãos e o conjunto das instituições representativas2.

Em 1989, esse forte sentimento de rechaço contra os que encarnam a politicagem, a corrupção, o desgoverno ou a traição da confiança popular desempenhou, outra vez, papel crucial na definição do comportamento eleitoral. Foi o que aconteceu com os dois grandes blocos em que se dividiu o eleitorado, isto é, os 35 milhões de eleitores que escolheram Collor de Mello e os 31 milhões que preferiram Lula da Silva. Assim, temos boas razões para entender aquilo contra o que o eleitor votou em 1989. Mas isso não explica a motivação positiva desse voto, isto é, a favor do que, precisamente, o eleitor se manifestou. Por outras palavras, não explica a relação que existe entre a rejeição de certos estilos e certos conteúdos da vida política e as aspirações do eleitor sobre a sua estruturação permanente.

Algumas tentativas têm sido feitas para responder à essa questão. A primeira, sugerida por analistas de posições diferentes, sustenta que a eleição de Collor de Mello teria representado o resultado de um confronto fundamental entre modernidade e atraso, com a vitória da primeira sobre o segundo. O pólo moderno, no caso, expressaria a tendência dos que se inclinaram pela desestatização da economia e pela reforma do Estado, visando atender o bem-estar das massas e tornar a economia eficiente, de modo que ela possa competir no mercado internacional e, dessa forma, impulsionar a retomada do crescimento do país. O pólo atrasado, ao contrário, se representaria pela tendência favorável ao estatismo, à manutenção do corporativismo, ao isolamento do país do resto do mundo e a um modelo de sociedade que, por definição, envolveria tanto a ameaça de extinção do mercado como a centralização das decisões econômicas e políticas. Para essa versão, os resultados das eleições constituem um avanço. Uma segunda tentativa sugere que, reforçando uma deficiência da cultura política do país ("o brasileiro não vota em partidos, mas em homens"), os votos teriam sido dados, preferencialmente, a personalidades políticas individuais. Além de revitalizar essa dimensão tradicional da política, enfatizando a personalização, das relações de poder, o voto teria consumado de vez a crise do sistema partidário legado pelo regime de 1964, sem, no entanto, sinalizar suficientes referências recíprocas entre os partidos de modo a dar lugar à emergência de outro sistema. Para essa versão, os resultados das eleições agravaram a crise político-institucional3.

Essas questões são estratégicas para a consolidação democrática no país. Não há democratização efetiva sem a secularização das estruturas através das quais a política se expressa ou se ao contrário, os arcaísmos da estrutura oligárquico-privatista sobrevivem ao fim do. autoritarismo. Da mesma forma, é virtualmente impossível falar em democracia.se os partidos, como organismos de agregação de interesses e de seleção das elites dirigentes, faltam ou não conseguem se articular em sistema, com capacidade para interpelar a cidadania e para cumprir a sua função governativa. Mas eles precisam ser analisados sobretudo no contexto das mudanças que, desde o início da transição política, vêm ocorrendo na cultura política dos brasileiros. De fato, como chamaram a atenção inúmeras análises, um dos aspectos mais notáveis das transformações que vêm ocorrendo na sociedade brasileira, desde o início dos anos 70, é o reconhecimento da democracia como valor geral, isto é, como forma de organização política e como modo de convivência social. Se é certo que isso não garante, por si só, a consolidação do regime democrático, podendo inclusive conviver com formas degenerativas de funcionamento das instituições de representação, parece bastante evidente, entretanto, que, no quadro de incertezas próprias das transições, essas mudanças podem representar um poderoso potencial de estabilização e de enraizamento da democracia.

Este artigo discute as relações entre participação eleitoral e as mudanças em curso na cultura política do eleitorado e sugere uma interpretação alternativa àquelas mencionadas para os resultados das eleições presidenciais. A minha hipótese é que a rejeição às sobrevivências arcaicas da tradição política brasileira, envolvendo traços visíveis de uma atitude moralizante dos eleitores diante dos estilos anti-republicanos dos políticos, assim como diante do desempenho considerado insuficiente das instituições representativas, constitui-se numa base indispensável para a consolidação de uma concepção publica da vida política no país, isto é, para a emergência de uma cultura política democrática e republicana. Antes de ser um sinal negativo diante da política, a indignação moral dos eleitores deve ser vista como ponto de partida tanto para que os políticos (os representantes populares) sejam avaliados segundo exigências públicas mais definidas (accountability) como para melhorar a qualidade da participação dos próprios cidadãos no regime democrático. Mais que um comportamento errático, portanto, os resultados das eleições presidenciais revelam a presença de elementos claros de cálculo racional no comportamento dos eleitores: esses, ao aderirem de modo cada vez mais explícito a valores democráticos básicos, tendem, simultaneamente, a cobrar mais dos políticos e da política (algo, por outra parte, que só pode ser feito agora que a transição strictu senso já terminou).

RESULTADOS ELEITORAIS, BASES SOCIO-ECONÔMICAS DO VOTO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

Em 1989, o eleitorado brasileiro dividiu-se quase ao meio, em dois grandes blocos. O primeiro situou-se do lado direito de um possível continuum ideológico, e deu 53,01% dos votos válidos (isto é, dos 66 milhões de votos que resultaram da soma de votação recebida por ambos os candidatos) a Fernando Collor de Mello, um político jovem/relativamente desconhecido até o ano anterior, oriundo de um pequeno estado do Nordeste e cujas origens políticas remontam ao regime autoritário. O segundo bloco, situado do lado esquerdo do espectro político, deu 46,90% dos votos válidos a Luis Inácio Lula da Silva, um outsider da política brasileira que, embora tentanto ingressar no jogo desde os primeiros anos da década, ainda era visto no inicio da campanha eleitoral mais como um líder sindical formado na luta contra a ditadura do que como uma liderança política de expressão nacional.

Collor de Mello venceu com os votos dos chamados grotões (vide quadros 4 e 5), isto é, dos municípios pequenos e médios do interior de todo o país e, em especial, dos estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, áreas que representam o Brasil mais atrasado e, ao mesmo tempo, onde o processo de modernização penetra mais lentamente e com mais dificuldade. Mas seria enganoso imaginar que isso significa que ele não tenha tido um volume bastante expressivo de votos também no Brasil moderno. Nas regiões Sul e Sudeste, isto é, no centro dinâmico da economia capitalista mais modernizada, ele disputou intensamente com Lula da Silva, superando-o por muito pouco no Sudeste, mas recebendo uma votação bastante equilibrada (embora inferior a 50% dos votos) em muitas capitais, áreas metropolitanas e municípios maiores, inclusive em São Paulo, Curitiba, Vitória e Belém.

José Álvaro Moisés

Professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo, pesquisador e presidente do CEDEC.

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