Para o filósofo Mário Sérgio Cortella, uma das principais referências do país em educação, somos a primeira geração que testemunha mudanças de paradigmas tão velozes.
“A novidade não é a mudança no mundo,
é a velocidade da mudança.” Foi assim que o filósofo Mário Sérgio Cortella,
professor há 42 anos, pai e avô, abriu a palestra Novos Tempos, Novos
Paradigmas, que aconteceu em São Paulo, no fim de setembro. Diante de uma
plateia hipnotizada pelo vozeirão com sotaque sulista e pela naturalidade em
tratar temas complexos sem firulas, ele deixou claro que o grande desafio da
atualidade é acompanhar as transformações para não ficar para trás.
Sim, estamos vivendo um tempo de
reviravoltas sem precedentes: na tecnologia, no trabalho, nas relações. Nesse
contexto, mudar não é apenas imprescindível, mas inevitável. Principalmente
quando se fala em educação. Em entrevista exclusiva à CRESCER, Cortella separa
o que é velho do que é antigo, defende que pais podem ser, sim, amigos dos
filhos sem perder a autoridade e critica o peso colocado na escola para assumir
um papel que é da família.
Como essa mudança tão veloz de
paradigmas tem afetado a forma como os pais criam os filhos?
Uma parte das famílias acabou
perdendo um pouco a referência dada à velocidade das mudanças e à rarefação do
tempo de convivência com as crianças. Isso fez com que muitas acabassem
terceirizando o contato com os filhos e delegando à escola aquilo que é
originalmente de sua responsabilidade. Só que isso perturba a formação das
novas gerações. É claro que criar pessoas dá trabalho e exige esforço. Acontece
que, no meio de todas essas mudanças, alguns pais e mães ficam desorientados.
Por isso, é necessário que eles encontrem apoio, em livros, revistas, grupos de
discussão. Não é só a educação dos filhos que é necessária, mas a dos pais
também.
Ao mesmo tempo que muitas famílias
terceirizam os cuidados, há um movimento de mães e pais largando a carreira
para se dedicar exclusivamente aos filhos, não?
Claro. Uma das coisas mais
importantes na vida é entender que a palavra prioridade não tem “s”. Não tem
plural. Se você disser: “tenho duas prioridades” é porque não tem nenhuma.
Então, deve estabelecer qual é a sua prioridade. Sua prioridade é o convívio
familiar? Então dê força a isso. É a sustentação econômica? Vá fundo. Só que,
ao escolher, não sofra. É evidente que ninguém precisa abandonar a carreira em
função da família, mas é necessário buscar o equilíbrio – da mesma forma como
se faz para andar de bicicleta: só há equilíbrio em movimento.
Se você parar, desaba. Tenha em mente
que haverá momentos em que a família é o foco. Em outros, a carreira. Mas
lembre-se de que a vida é mais como maratona do que como uma corrida de 100
metros rasos: você não sai disparado feito um louco. Tem horas que vai mais
rápido, outras em que desacelera. O segredo é ir dosando.
Você diz que, em um mundo de
mudanças, nem tudo o que é antigo é velho. Como saber o que está ultrapassado
na criação dos filhos?
No convívio familiar, uma coisa que é
antiga, mas não é velha, é o respeito recíproco. Outra é a capacidade de o
adulto saber que a criança é “subordinada” a ele, ou seja, que está sob as suas
ordens. O pai não pode se tornar refém de alguém que ele orienta e cria. Agora,
uma coisa que é velha e que deve ser descartada é o autoritarismo, a agressão
física, o modo de ação que acaba produzindo algum tipo de crueldade. Isso é
velho e é necessário, sim, mudar. Na relação de convivência em família é
preciso modificar aquilo que é arcaico. O que não dá para perder é a
honestidade, a afetividade e a gratidão. Tudo isso vem do passado e tem que
continuar.
E como os pais podem construir essa
autoridade sem autoritarismo?
O pai e a mãe têm que saber que ele
ou ela é a autoridade. Ao abrir mão disso, há um custo. Quem se subordina a
crianças e jovens, e têm sobre eles alguma responsabilidade, está sendo
leviano.
Mas você acha que dá para ser amigo
dos filhos?
Claro. O que não pode é ser íntimo no
sentido de perder a sua autoridade. Eu tenho amizade com os meus alunos, mas
isso não retira a autoridade nem a responsabilidade que eu tenho sobre eles
como professor. Há uma frase que precisa ser deixada de lado que diz que “o
amor aceita tudo”. Isso é uma tolice. O amor inteligente, o amor responsável é
capaz de negar o que deve ser negado. A frase certa é: “Porque eu te amo é que
eu não aceito isso de você”. O amor que tudo aceita é leviano, irresponsável.
Atualmente, se joga muita
responsabilidade na escola. Qual é o limite entre os deveres dos pais e dos
professores na educação das crianças?
É uma coisa estranha: a escola fica
quatro ou cinco horas com as crianças, em um dia que tem 24 horas, com 30
alunos juntos. É um estabelecimento que deve ensinar a educação para o
trabalho, educação para o trânsito, educação sexual, educação física,
artística, religiosa, ecológica e ainda português, matemática, história,
geografia e língua estrangeira moderna.
Supor que uma instituição com essa
carga de atividade seja capaz de dar conta daquilo que uma mãe ou um pai é que
tem que ensinar a um filho ou dois é não entender direito o que está
acontecendo. A função da escola é a escolarização: é o ensino, a formação
social, a construção de cidadania, a experiência científica e a
responsabilidade social. Mas quem faz a educação é a família. A escolarização é
apenas uma parte do educar, não é tudo. Já tem personal trainer, personal
stylist, agora querem personal father, personal mother. Não dá, é inaceitável.
Por outro lado, os pais interferem
demais na escola?
Há uma diferença entre interferir e
participar. A escola tem que ser aberta à participação. Quando há uma
interferência é sinal de que está mal organizado. O que acontece nas escolas
particulares, que são minoria e representam apenas 13% do total, é que muita gente
não lida mais com a relação família versus escola como parceria. É mais como se
fosse um relacionamento regido pelo Código do Consumidor, como um cliente, como
se o ensino fosse o mesmo que a aquisição de um carro. Essa relação é estranha
e precisa ser rompida.
A educação de gênero tem gerado
repercussão no meio escolar. Como você acha que as escolas devem abordar esse
tema?
Uma sociedade que não é capaz de
atender à diversidade que a vida coloca é uma sociedade tola. É preciso lembrar
que a natureza daquilo que é macho e fêmea está na base biológica, mas o gênero
se constrói na convivência social. O macho e a fêmea vêm da biologia. Mas o que
define masculino e feminino é aquilo que vai se construindo no dia a dia. Por
isso a escola tem que trazer o tema. É claro que não vai incentivar uma
discussão que seja precoce para crianças de 8, 9, 10 anos. Mas também não vai
fazer com que aquele que é diferente seja entendido como estranho. Aquele que é
diferente é apenas diferente, não é estranho. Nessa hora, é tarefa da escola
acolher. Se a família não concorda e a escola é privada, mude a criança de
escola. Agora, se for uma instituição pública, é um dever constitucional e
republicano admitir a diversidade.
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